“Bebem-se certezas num copo de vinho” diz um verso de uma conhecida canção de Sérgio Godinho. As certezas que precisamos – ou julgamos precisar – quando a nossa vida se torna uma incerteza. Quando tudo à nossa volta é uma imensa dúvida, ou deixamos que se torne um verdadeiro caos, e pensamos curar, resolver, com o álcool em qualquer das suas formas viciantes. E quanto mais se avoluma a nossa dúvida das coisas mais essenciais da vida, maior se torna a necessidade de procurarmos um novo “amigo” – dos poucos que nos resta quando a vida se torna madrasta – e que, sem darmos conta, se torna a nossa companhia, a nossa fortaleza… Estranho amigo e estranha esta forma que nos enleia, nos envolve e nos empurra em espiral galopante para o fundo, para uma “estranha forma de vida”! É isto que “nos vem à memória”: retalhos de uma vida perdida, de muitas vidas arrastadas por quem precisava de um qualquer líquido fermentado ou destilado para ser, ou melhor, para se sentir um… homem!
Isto é a experiência que, infelizmente, muitos de nós conhecem pessoalmente, mas as causas destes (nossos) estados crónicos, dependentes, agudos ou até doentios e as suas consequências no organismo, no corpo humano em proporcional gravidade em danos na mente e no espírito, ficámos a sabê-los do ponto de vista médico, científico e sociológico, de uma forma brilhante, cativante, com uma simplicidade explicativa, aqui e ali com laivos de ironia, salteados com alguma amargura, no colóquio sobre prevenção no Alcoolismo, explanado com mestria por Carlos Brito, na sala de convívio do nosso Estabelecimento Prisional Regional da Covilhã. Ao ouvi-lo aprendemos muito com ele e com o seu percurso de vida e brilhante dissertação, muitos de nós viram também desfilar um pouco das nossas vidas passadas quando, do alto da nossa mísera sabedoria etílica, apontávamos o dedo e criticávamos outras dependências e não conseguíamos ver que no “fundo da garrafa vazia”, como avisa outro verso daquela canção, estava cada vez mais o fundo da nossa própria dignidade e independência… Um fundo quantas vezes sem retorno! E a única forma de o evitar, tal como todos os vícios e doenças, é a prevenção. Porque nenhum vício pode mais que a vontade do ser humano, desde que haja educação e informação, acompanhados de hábitos salutares e culturais, logo desde a adolescência e a juventude.
Obrigado Carlos Brito, por mim e por todos os meus companheiros, que partilharam a manhã do passado dia 28 de Março na sua companhia, ouvindo os seus ensinamentos e, sobretudo, pela profunda introspecção, atrevendo-me a dizer pela provocação reflexiva para o resto das nossas vidas! Não sei se foi “o primeiro dia do resto da minha vida”, mas foi seguramente mais um dia – e muito importante graças a si – no resto da minha (das nossas) vidas, independentemente e livre de ilusões, reclusões e outros preconceitos viciantes como o álcool. Obrigado.
Aníbal Cabral, ex-alcoólico e recluso no Estabelecimento Prisional da Covilhã, carta enviada, com autorização do autor, pelo Centro de Alcoólicos Recuperados da Guarda