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À porta da escola (sem entrar)

Tresler

1.Entramos na tua aula e já sabes o que te espera. Não temos medo. A nossa casca é grossa, nada em ti nem na escola nem nos programas nos interessa. O medo, que poderia levar-nos a respeitar-te, a dar o benefício da dúvida ao currículo, é aquilo que, pela ausência, nos vai enterrar. Sabemos que quem se aventura sem medo cai na teia. É o nosso destino. Os pais não conseguiram, a escola não conseguiu, mil reformulações de currículo e projetos a fazer de conta que algo muda sem alterar nada não vão adiantar de muito. Daqui a pouco, quando te virares para o quadro, os nossos braços vão agitar-se, semear a sala de tudo aquilo de que não gostas. A nossa boca não consegue calar-se, de tão habituada a dizer não, a recusar. Pões-nos as mãos na boca mas não calamos, mordemos. E rimos, rimos muito, brigamos, brigamos muito. Muitos de nós carregam desde a infância uma carga humilhante de insucessos e chumbos, um lastro pesado de frustração que não soubemos viver ou contornar porque se acumulou como gordura má ou como aquele sarro que nem com escova de arame sai. Somos imprestáveis, isso mesmo, e sabemos que a escola não consegue transformar-nos. Para quê portanto cooperar? Já vais ver quem manda aqui.

2.Entro na sala de diretores de turma e, antes de ser recebido, já sei o que vem aí. Queixas e mais queixas. E uma recriminação escondida por eu não ter sabido “educar o meu filho” e “dar-lhe hábitos de trabalho”. O diretor de turma vai-me mostrar uma folha com mais faltas às aulas e outra com mais faltas de respeito. E nada do que eu possa dizer me vai ajudar. Já sei como vou reagir. Como habitualmente. Dizendo que afinal na infância e na juventude sempre lhe demos tudo. Dizendo que são as companhias que o fazem assim. Dizendo que o outro filho não nos saiu assim. Dizendo que se os programas fossem um bocadinho mais adaptados à realidade… Ai, com os tempos a correr tão depressa, como gostava de tirar um curso de pai, com canudo e tudo! Nada a fazer no entanto. Como impedi-lo de sair à noite? Como obrigá-lo efetivamente a estudar? Como conhecer as tais “más companhias”? Como fazer por conhecer os pais dos amigos nesta vida urbana distante e demente que vivemos? Como ver o que realmente se passa em cada noite de saída com o meu filho sem ter que andar a persegui-lo por esses bares e lugares de fumo e vício? Como saber o que fazem meia dúzia de ganapos quase de fraldas num sótão até de manhã? Bom dia, so’tor, sou o pai do Filipe.

3.Entro no consultório atravessando a sala de espera e já ali estão pai, mãe e filho a esperar a hora da minha consulta, o filho um pouco afastado dos pais. Bom aspeto, estatuto de classe média-alta, mas umas olheiras fundas cavadas em todos. Umas do álcool, outras da droga, outras da separação, outras das lágrimas, todas de longas vigílias. Vai ser duro o confronto. Ainda bem que o rapaz aceitou finalmente participar numa primeira sessão conjunta e que o pai, separado, também aceitou vir. Pelos outros que cá tenho tido já estou a imaginá-los. O filho, encarniçado nas primeiras sessões, a não querer negociar, a defender a sua “independência” e a vida com o seu grupo, a sua liberdade de fazer o que bem lhe apetece, sem obrigações em casa. Os pais, encolhidos como em casa, a evitarem exigências e ameaças, a evitarem o riso superior do filho, a hesitarem em qual deve ser a atitude por falta de capacidade de concertação. A esforçarem-se para cada um não atirar ao parceiro a culpa deste fracasso chamado Filipe. A evitarem dizer ao outro que ele ou ela quis pôr limites mas o outro fez o jogo contrário. A evitarem reconhecer que a sua própria crise conjugal ajudou àquela crise ali feita rosto esfacelado do filho. Isto é, destruídos e vencidos já antes de entrar. Vamos começar? Família Monteiro, por favor.

4.Ao acabar o primeiro livro de Daniel Sampaio de uma coleção recente do Público, “Lavrar o mar – um novo olhar sobre o relacionamento entre pais e filhos”, com uma colaboração magnífica de Eulália Barros, livro que inspirou os textos acima apresentados, vem-me à memória toda a ambição e “ilusão” que nós, professores, colocámos no início da carreira face aos desafios do mundo. Dezenas de anos de carreira em cima fazem-nos duvidar hoje do trajeto, dos protagonistas e dos desígnios. Daniel Sampaio e Eulália Barros passam-nos sobretudo quatro lições nesta abordagem: 1) a infância é o período ideal para estabelecer limites, para exercer um esforço “contentor” que seja também orientador, sem retribuições em excesso que tornam a criança omnipotente, pecado do nosso tempo; 2) não conseguimos inversão de atitudes ou de rumo dos jovens sem ouvir a sua “versão”, ou seja, como se veem a eles próprios e aos seus comportamentos; 3) é necessário um apoio concertado aos pais, vítimas também, afogados num mundo de tendências contraditórias em que é difícil encontrar o norte e em que continuam a ter muitas dificuldades em fazer o melhor pelos filhos; 4) a escola só muda com grandes reformas, que compreendam o mundo atual e aquilo que ele faz de nós e dos jovens.

Por: Joaquim Igreja

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