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A ponte e a porta

Para George Simmel a vida parece ser um movimento através do qual se processam constantes remodelações das relações entre as coisas, simbolicamente representadas pela “ponte” e pela “porta”. Vive-se nesta constante interacção entre a ligação-ponte, que se estabelece pela consciência da separação, e a separação-porta, onde se consolida a potencialidade de limitar algo dentro do ilimitado, mas cuja mobilidade permite quebrar o limite. Assim sendo, estes elementos simbólicos, por si só, acabam por manifestar o seu contrário e é esta inter-relação de contradições, de coesão e dispersão em simultâneo, que parece dar sentido às operações humanas.

Para o homem não é suficiente circular entre dois espaços, ele precisa de marcar um caminho, de fixar a união com a sua própria intervenção, precisa de humanizar essa ligação. A ponte simboliza a espacialização dessa vontade de “coagular o movimento”, dando sentido à nossa percepção da separação a partir da necessidade de unir. Entendo que o seu valor estético reside na materialização da síntese da inter-relação homem-natureza, como se a natureza nos mostre algo visualmente separado com o propósito de sermos nós a uni-lo – a ponte como “evidência” da natureza perante o homem. Parece-me pertinente esta ideia de que a acção do homem faz parte da própria natureza da natureza, pertencendo-lhe, de que o homem vai agindo à medida que a natureza lhe mostra onde e como operar.

Quando o homem criou o espaço limitado, através de um conjunto de elementos físicos (paredes), promoveu um corte a partir do espaço contínuo, separou, deu particularidade ao espaço. A porta surge pela necessidade intrínseca de quebrar essa separação, conferindo linguagem ao limite. A mobilidade da porta materializa a possibilidade de ultrapassar o limite e é, por isso, elemento simbólico da posição do Homem no mundo.

Relativamente à ponte, a porta atribui uma intenção diferente à ligação. Na ponte, os elementos a ligar não se apresentam diferenciados. A porta cria duas intencionalidades opostas, dois sentidos de movimento inversos. A porta encerra a vontade do homem entrar ou sair do espaço finito. E se a ponte parece, desde logo, ser a resposta do homem a uma evidência da natureza, a porta é a resposta do homem à sua própria evidência enquanto ser individual e relacional. Talvez por isso, o simbolismo da porta esteja tão presente na arquitectura. Por esta percepção de que é um elemento de fusão do interior-exterior, onde o homem encontra a verdade das relações espaciais. Vejo sempre a porta como a boca dos edifícios…que comunica, que alimenta.

No invisível corte entre o centro da cidade e a sua periferia haverá porta? Será que a dispersão da cidade a cores não terá surgido como forma de dar sentido à coesão da cidade a preto e branco? Ou será a cidade dispersa, sem entraves à expansão, essa porta entre a cidade antiga que se esgotou no seu espaço, e o infinito para o qual a primeira parece tender.

Na “cidade genérica” de Rem Koolhaas há uma fuga ao cativeiro do centro, sempre demasiado exigente, absorvente – demasiado diferenciador, na medida em que sempre se pretende demarcar da periferia. A cidade genérica, que povoa, expande-se e renova-se ocupando vazios, destruindo o que já não funciona e reocupando, até chegar ao campo (à não cidade). Talvez esta cidade “serena”, porque coloca o “domínio público sobre rodas”, ou seja, em movimento, tal como a porta, esta cidade fundada por pessoas em trânsito, seja o que na porta atribui a “possibilidade de quebrar esse limite a qualquer instante, e atingir a liberdade”. Por outro lado, talvez o centro saia do seu estado “moribundo” quando assumir, de facto, uma dependência recíproca da periferia.

Por: Cláudia Quelhas

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