As recentes declarações de Passos Coelho em que reconhecia não ser um cidadão perfeito devido ao seu historial contributivo constituem, do meu ponto de vista, um dos acontecimentos políticos com maior carga simbólica da história da democracia portuguesa. Basta recordar as diatribes, em defesa própria, proferidas pela longa lista de políticos suspeitos deste ou daquele ato impróprio, para olhar com o maior espanto para as palavras de Passos (mais ou menos isto: «Se os senhores acham que vão encontrar provas do logro, não se cansem, é verdade; ninguém esperará que eu seja um cidadão perfeito»). O cidadão imperfeito que Passos agora admite ser é afinal o cidadão que erra, fracassa e luta em vão contra as adversidades da vida.
A defesa do “cidadão imperfeito” soa tanto mais estranha quanto o atual PM fez assentar a sua legitimidade política e a do governo a que preside (e da própria política de austeridade) numa certa regeneração da política “custe o que custar” e no discurso da “culpa coletiva” segundo o qual a sociedade portuguesa, mas também e sobretudo a grega, viveram acima das suas possibilidades. Eis que a polémica cai em cheio num momento em que vários ministros do governo português, e o próprio PR Cavaco Silva, são acusados de atos e declarações moralistas e agressivos face à Grécia e às mais recente negociação do programa de assistência helénico. A questão que incomoda é porventura a de que se ninguém espera que Passos, PM, seja um cidadão exemplar, por que razão alguém esperará algo mais dele daqui para a frente?
Há poucos dias, as palavras de Alain de Botton sobre a poética da tragédia na Grécia clássica vieram, sem querer, trazer luz à discussão. Num texto publicado no projeto online “The Book of Life” e incluído, nem mais nem menos, no capítulo dedicado às virtudes de caráter do sujeito, o filósofo pergunta-se onde assenta a responsabilidade pelo sucesso e pelo insucesso na vida. Em “On Losers and Tragic Heroes”, de Botton sublinha que atualmente essa responsabilidade é atribuía em exclusivo a cada indivíduo em questão – não há espaço para contemplações, azares ou contingências – pelo que, quando alguém erra ou fracassa, o ato não é só sério; ele assume o caráter de verdadeira catástrofe. Assim, está fora de questão qualquer consolo metafísico que aligeire a culpa do sujeito ou que a enjeite, pelo que a Modernidade transformou o fracassar numa espécie de veredito existencial sobre o estado da alma. Para de Botton, as sociedades modernas glorificam os vencedores mas não sabem realmente o que fazer com os perdedores – os “losers” – em número muito maior que os primeiros.
A análise de de Botton não é estranha à retórica da crise que tem sido repetida como um mantra desde 2011. Se por um lado foi repetido à saciedade que a culpa da crise é de quem caiu nela – de quem perdeu o emprego e não dispõe da resiliência suficiente para dar a volta à vida, ou de quem caiu na pobreza e só sabe ser piegas, de quem vive à custa das prestações sociais ou de quem não é capaz de ver na imigração forçada uma oportunidade – também foi instalada a censura subreptícia de que quem não se reconverteu em máquina de exportação de bens e serviços não merece realmente as oportunidades criadas pelo “país que está melhor”.
Mas de Botton também nos diz que nem todas as sociedades abordaram o sucesso e o fracasso da mesma forma. Para os gregos do período clássico, podia acontecer ser-se bom e mesmo assim fracassar, pelo que a “tragédia grega” representa uma certa forma poética de dizer que as coisas na vida acontecem de modo aleatório, isto é, de acordo com dinâmicas que não refletem os méritos individuais de quem foi apanhado pelas teias do destino. Confrontado com o seu historial contributivo, Passos não contestou a veracidade nem sequer a gravidade dos factos; ao contrário, não hesitou em recorrer à poética grega da tragédia pessoal («pode ser-se bom e mesmo assim falhar, por razões que escapam ao indivíduo») para atribuir a culpa às circunstâncias da vida («atrasei-me, não tinha dinheiro»). Afinal, ninguém deveria esperar de Passos que fosse o cidadão perfeito – nem sequer aqueles que durante anos estigmatizou com a culpa coletiva de viverem acima das suas possibilidades.
Por: Marcos Farias Ferreira