Nesses dias do fim, fui ao Eliseu. Do parque, subia o grito rouco das aves, e, no palácio, amontoavam-se, por todo o lado, caixas e despedidas. Sob o ouro dos tectos, via-se a cinza dos gestos que destruíam ou guardavam papéis. Terminava ali uma era de 14 anos, vividos dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, que atravessou todos os círculos de Dante. Espelho desse tempo que acabava, o Presidente rarefazia-se aos olhos de todos, devorado pela doença, com uma dignidade meticulosa e exibida. Toda a sua vida fora, como cedo adivinhou François Mauriac, um romance. Um romance com uma grande personagem principal e muitas personagens secundárias. De Jarnac a Paris e ao mundo, este Julien Sorel da política foi, ao contrário do de Sthendal, um vencedor.
No dia ameno de Abril de 1995 em que fui ao Eliseu, atravessava os corredores uma ânsia e um medo. Nessa noite, François Mitterrand, a poucos dias de acabar o seu duplo mandato, era o convidado de Bernard Pivot, no “Bouillon de Culture”, e, no estado em que estava, tudo podia acontecer. Mas o que aconteceu esteve à altura deste Rei Lear já sem reino para dividir pelos descendentes. Para repartir, entre eles, havia apenas derrotas, traições e ressentimentos. Desse desastre, o resultado chega aos dias de hoje.
O Presidente parecia um fantasma de si mesmo, sombra de um poder que, como ele, agonizava. Com o rosto lívido e as mãos trémulas, em que o tremor da mão direita agarrava o tremor da mão esquerda para o fazer tremer menos, nos seus olhos brilhava ainda uma última firmeza. E via-se o velho relâmpago de astúcia, sabedoria e malícia. Mitterrand falou dos “grandes trabalhos” e dos grandes dias, dos grandes livros, lidos sob a luz da noite, e das grandes paisagens, vistas sob a claridade do sol. Falou das coisas, dos homens e de Deus. E foi ao falar disso que disse aquilo que ficou na memória de todos. A dada altura, Pivot, com uma violência elegante e quase feliz, pronunciou a palavra morte e perguntou-lhe: “Senhor Presidente, se, do lado de lá, estiver Deus à sua espera, que deseja que Ele lhe diga?” Mitterrand olhou-o com um olhar agudo e impassível, como se, verdadeiramente, já estivesse do outro lado, e respondeu, iluminando o rosto: “Penso que Ele seria levado a dizer-me: ‘Finalmente, sabes!’ Espero que Ele acrescente: ‘Sê bem-vindo’.” (“Je pense qu’Il serait appelé à me dire: ‘Enfin, tu sais!’ J’espère qu’Il ajouterait: ‘Sois le bienvenu’”).
Este diálogo com a Ausência provocou uma comoção nacional. A França percebeu que ia deixar de ter um Presidente único. Para Mitterrand, a política foi sempre uma grande arte. A sua forma de escrever o grande livro impossível (“escritor, ser-lhe-ia insuportável não ser um grande escritor”). Mas foi na política que escreveu alguns livros possíveis e belos (dizia que o escritor e o político têm em comum uma escolha do futuro). Ele soube sempre usar a sua cultura e a sua grandeza para corrigir a sua pequenez e a do poder, que, se por vezes engrandece, também frequentemente diminui. Num país como a França, toda a sua vida política pôde ser isso: Veneza a corrigir Vichy; Lamartine a emendar Beregovoy; a Pirâmide do Louvre a cobrir as escutas telefónicas; a Ópera da Bastilha a esconder o ataque ao “Rainbow Warrior”; a Grande Biblioteca em frente de René Bousquet; o Arco de La Défense erguido sobre o desemprego.
Lembrei-me agora desses tempos tão próximos e tão distantes. E das muitas vezes em que, acompanhando Mário Soares, estive com Mitterrand, antes e depois de ele ser Presidente: sempre a mesma subtileza refinada e distante (escutei, num jantar no Palácio da Ajuda, uma sua conversa irrepetível com Amália e Cunhal). Lembrei-me agora dele e disto porque li o recente livro de memórias da secretária Paulette Decreane, intitulado Secrétariat Particulier, juntando-se a uma série infinita de obras sobre o misterioso Presidente e a sua vida múltipla. A certa altura da narrativa, a autora refere o amor dele pela literatura e cita os escritores de que mais gostava. Depois, conta que um dia lhe perguntou: “Por que razão não foi o senhor escritor?” Ele respondeu-lhe: “Porque é aquilo que há de mais difícil no mundo.” Mitterrand quase sabia do que falava.
Por: José Manuel dos Santos