Fui há pouco tempo contactado para colaborar com uma das listas concorrentes aos corpos sociais da Ordem dos Médicos e, embora seja apoiante dessa lista, não pude aceitar tal convite pela simples razão de que já não pago as quotas há imenso tempo (anos). Querem saber porquê?
Foi assim: não sei se se recordam do caso Pequito, um trabalhador da indústria farmacêutica que tendo sido despedido por determinada empresa deu com a boca no trombone e denunciou aquilo que toda a gente sabe, os laboratórios e os médicos melhor ainda – e a Ordem dos Médicos melhor que ninguém – e que é o favorecimento dos médicos através de brindes (desde as inócuas e inefáveis lapiseiras às já onerosas e eventualmente suspeitas deslocações a congressos de discutível interesse formativo e eufemisticamente apelidados de turismo científico, como já li algures, ou mesmo de indesculpáveis e criminosas remunerações em dinheiro puro e duro) em troco de uma melhor atenção aos produtos promovidos numa estratégia de marketing de contornos nem sempre muito claros. Devo desde já adiantar que nada tenho a obstar a tais práticas desde que não haja lugar a perversão de prescrição, ou seja, desde que como “retribuição da atenção” por parte do médico não haja abuso na utilização de determinado fármaco, seja por não ser necessário, seja por existirem alternativas no mercado que apresentem melhor custo-benefício (comprovadamente mais eficazes ou tão eficazes mas mais baratos) perante determinada circunstância clínica. Cada um dá o que entender a quem entender desde que, repito, não haja contrapartidas que, em última análise, recaiam sobre terceiros (os verdadeiros interessados no sistema e sua razão de ser ou seja, os doentes) de forma negativa.
Por essa altura vi-me confrontado com um processo de investigação por parte da Inspecção-Geral de Saúde pelo facto de ter aceite da parte de determinada empresa um fato de treino cujo valor, pelos vistos, ultrapassava em 2 ou 3 contos (ainda foi nesse tempo) o máximo tido como aceitável (7 ou 8). Temendo ver o meu nome (quiçá a fotografia) nos jornais (sempre sedentos de barracadas com médicos, esses malandros), integrando uma lista negra de médicos corruptos e estando de consciência tranquila em relação à honorabilidade da minha prática profissional, dirigi-me ao departamento jurídico da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos para procurar apoio. Fui muito bem recebido, deram-me toda a razão, solidarizaram-se com a minha indignação e sapientemente… aconselharam-me a arranjar um advogado. Fiquei pior que estragado! Falei com um advogado, a investigação investigou (vasculharam-me meses de prescrições) e acabei por ficar livre de chatices por não se ter demonstrado prática danosa nem relação de causa efeito entre o fato de treino e os fármacos que havia receitado.
Mas se fiquei deveras aborrecido com o meu caso pessoal, igualmente me chateou a atitude da Ordem que perdeu a oportunidade de assumir que a medicina é exercida por seres humanos, logo corrompíveis, que esse problema existe embora não seja predominante, oferecer a sua colaboração no esclarecimento dos factos (isso fê-lo, não disse é como) e principalmente explicar que estas coisas não se resolvem com investigações e repressão mas com toda uma mudança de cultura e de prática médica na qual a Ordem devia estar seriamente empenhada. Desde aí apenas continuei a pagar quotas enquanto me interessou para efeitos de progressão na carreira e nem mais um chavo. De igual modo, e no que diz respeito aos recentes e infelizes acontecimentos de Lagos, a Ordem apareceu a terreiro numa atitude irritantemente corporativa negando à partida a hipótese de ter havido erro médico e insistindo na culpabilização dos fármacos utilizados (genéricos). Independentemente da verdade apurada e da subsequente decisão judicial é altura da Ordem assumir que o erro médico é indissociável da prática médica, porque exercida por seres humanos, e que o erro médico (técnico) não significa necessariamente negligência ou violação ética e muito menos desprezo ou atentado deliberado contra a saúde ou vida de outrem. A Ordem deve sim colaborar (como parceiro tecnicamente abalizado e insubstituível) no esclarecimento dos factos, mas não investigar nem julgar (seria ser juiz em casa própria). Só deste modo sacudirá a capa de suspeição de corporativismo serôdio e proteccionista com que infelizmente é vista pela generalidade dos cidadãos e assumirá uma postura pedagógica simultaneamente perante os profissionais médicos e perante a sociedade, contribuindo para promover a imagem daqueles, que convenhamos, já conheceram melhores dias.
Por: Vasco Queiroz