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A noite de onde ela vem

Onde se explica porque é que Rosa Lobato de Faria não morre.

Se eu morrer de manhã

abre a janela devagar

e olha com rigor o dia que não tenho.

Não me lamentes. Eu não me entristeço:

ter tido a noite é mais do que mereço

se nem conheço a noite de que venho.

Rosa Lobato de Faria

Rosa era uma mulher deslumbrante e nunca viveu disso. São raras as pessoas de quem se pode dizer que não fazem vida da sua mais imediata qualidade, seja ela a beleza, a inteligência, o sentido de humor, ou mesmo a família, que em Portugal ainda passa por ser uma distinção individual. Rosa era uma pessoa que se empenhava em ser o melhor que podia ser, em tudo, com toda a gente e em toda a parte. Aparentemente sem cansaço. Tinha uma disponibilidade infinita. O seu sorriso era uma torrente de luz e parecia fácil. Se lhe pediam uma letra para uma canção em dois dias, ela fazia-a, e fazia-a bem. Era uma excelentíssima actriz – os seus grandes momentos de televisão (“Humor de Perdição”, de Herman José, por exemplo, onde colaborou também como letrista) ou de cinema (o magnífico “Tráfico”, de João Botelho) demonstram-no. E era ainda uma boa escritora – durante toda a vida poeta, nas últimas décadas também romancista. Além disso, acarinhava a família e os amigos, para os quais cozinhava com gosto – e muito bem, como era seu timbre. Brincava com o facto de ser considerada “uma senhora bem”. Era, isso sim, uma mulher profundamente livre – nessa vocação para a liberdade, nascida de uma apurada intuição e de uma curiosidade avassaladora, residia o segredo dos seus múltiplos talentos. Uma vez perguntei-lhe: “Como é que consegues fazer tudo o que fazes… e sem stresse?” Passávamos dois dias em Lagos, filmando um programa de televisão, e Rosa sugerira que passássemos ao “tu”, que tornava as conversas mais fluentes. Com Rosa não havia cerimónias, nem má-língua, nem conversas sobre o tempo ou sobre o valor imenso e mal tratado das produções dos nossos importantíssimos egos. Estar com ela era como morar noutro país, íntimo e voltado para o futuro. A resposta dela foi extraordinariamente simples e concisa: “Penso numa só coisa de cada vez, e em absoluto.” Confessar-me-ia depois que levara décadas a afinar esse método e que às vezes ainda tinha as suas escorregadelas – mas tentava, simplesmente, não se preocupar com isso; todas as matérias se contagiam umas às outras quando o que as move é a paixão. E Rosa era uma apaixonada. Uma apaixonada lúcida, porque sem essa capacidade de silêncio e sofrimento a que se chama lucidez não se consegue criar nada.

Apresentei um dos seus romances, “A Trança de Inês”, imaginativa transposição para a nossa era da mítica história de amor de Pedro e Inês. Admirava a sua capacidade de efabulação. A crítica, em geral, considerava-a ingénua, porque vivemos numa época em que um romance tem de ser cínico e desabrido para parecer inteligente. A autora de “Romance de Cordélia”, narrativa valente centrada numa prisão de mulheres e na violência que torna as vítimas em assassinas, sabia que o mundo era mais do que isso. Nunca se deixou sequer sobrevoar pela sombra da inveja ou do ressentimento. Quando alguém tentava acirrá-la com a falsa cumplicidade das comparações, encolhia os ombros e dizia que cada um tem o seu caminho e faz o que pode. Na autobiografia que, há cerca de dois anos, publicou no “JL”, escrevia: “Há 45 anos, com aquela soberba muito feminina, costumava dizer que o meu espelho eram os olhos dos homens. Agora são os olhos dos meus leitores, sem distinção de sexo, raça, idade ou religião. É um progresso enorme.” Tinha a singularíssima arte de não se levar demasiado a sério nem se desmerecer em lamúrias. Sabia amar o tempo e as rugas. Nunca escondeu ou omitiu a idade – por isso mesmo, desapareceu em plena juventude, sem parecer, por fora ou por dentro, os 77 anos que constavam do seu bilhete de identidade e que, de facto, nunca teve. Rosa Lobato de Faria não morreu, porque a faísca dos que muito amaram não se apaga mesmo.

Por: Inês Pedrosa

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