A democracia começa a ser tratada como um estorvo. Quando digo “democracia” quero significar apenas o seu sentido corrente actual, que mais não é do que a obrigação dos dirigentes políticos e o direito dos cidadãos em ver decidido nas urnas o exercício do poder. Haveria muito mais, como por exemplo a obrigação e o direito de participar na discussão que leva à tomada de decisões. É que isso de colocar uma cruz à frente de um nome num papelinho depois dobrado em quatro e colocado anonimamente numa caixa, sendo ainda democrático, é já uma corruptela da ideia original. Não digamos apesar disso cinicamente, como Lenine, que a democracia é a forma que os oprimidos têm de escolher os seus opressores de quatro em quatro anos, mas admitamos que nem tudo tem corrido bem.
Recordemos Manuela Ferreira Leite, que desabafava há uns anos que tudo seria muito mais fácil (para executar as reformas de que o país precisava) se fosse possível suspender a democracia por algum tempo. Na altura foi muito maltratada por essa frase mas hoje está a fazer-se muito pior. Dois primeiros-ministros, o grego e o italiano, foram demitidos durante o mandato para o qual foram democraticamente eleitos por ordem de Merkel e Sarkozy – ambos sem direito a voto nessa matéria. A maior parte das decisões mais relevantes passa ao lado da vontade dos eleitorados e, a caminho de um federalismo europeu continuamos sem uma instituição europeia com capacidade de decisão que possa ser directamente eleita pelos cidadãos europeus.
No parlamento madeirense acaba de se reduzir a ideia de democracia a uma grotesca caricatura. Por alteração recente ao regimento da assembleia passou a ser possível a um deputado votar por todos os deputados ausentes da sua bancada. Caberia em primeiro lugar perguntar para que servem os outros se basta um, mas é ainda mais grave: aniquila-se a função de discussão de ideias do Parlamento, destrói-se a independência do deputado (já em crise com a disciplina partidária), corta-se o já muito ténue fio que ainda ligava o deputado aos seus eleitores.
Pior do que tudo isto, do que o coma induzido em que se encontram a ideia de democracia e os seus princípios é a ideia cada vez mais pressentida, ainda só em surdina, que foi em democracia que chegámos ao estado em que estamos e que por isso a culpa é do sistema. Os políticos governam não em função do bem público mas do ciclo eleitoral. A governação é um fim em si mesmo. O contrato eleitoral deixou de ser levado a sério e é já pretexto de irrisão. Podiam resumir-se campanha eleitoral e tomada de posse a duas frases: “prometo-vos tudo” e “não posso cumprir nada”. Não foi o que disseram, com muitas mais e inúteis palavras Passos Coelho, José Sócrates e Durão Barroso?
Pouco a pouco, sugere-se que seria melhor substituir estes políticos mentirosos e incompetentes por tecnocratas sabedores, que nos tratassem a todos como precisamos e não como queremos – que, a fazerem-nos a vontade, quereríamos todos hoje aumento de ordenados e diminuição de impostos, mesmo que amanhã não houvesse nada que comer. Pouco a pouco resvalamos assim para esse novo mundo, em que a nossa escolha é desvalorizada e se sugere que seria melhor alguém, mais sábio, decidir por nós. Esse mundo não tem nada de novo nem de melhor, como devíamos todos ter a obrigação de saber e se lá regressarmos é evidentemente por culpa de todos e se calhar definitivamente.
Por: António Ferreira