Um cão /que morre/ e sabe/ que morre/ como um cão/ e que pode dizer/ que sabe/ que morre/ como um cão/ é um homem (E.Fried)
Como qualquer animal ou ser vivo o homem morre, mas só ele sabe e tem consciência que um dia o final chegará. Assim, a dignidade humana permite que o homem não se deixe tratar como algo, mas sim como alguém. Mesmo que tentemos esquecer a morte ela não se esquecerá de nós, embora não saibamos quando ou onde ou como vamos morrer, o que é certo é que durante a vida aprendemos a arte de morrer. Mas esta aprendizagem torna-se tão mais difícil quanto mais a sociedade evolui para valores como a juventude eterna, o êxito, o poder e o prazer, correndo o risco de a negarmos de tal forma que ela deixa de ser humana, mas cada vez mais artificial.
Escrevia Gabriel Garcia Marquez no seu último livro, dando voz a um ancião de 90 anos “Vivo numa casa colonial … onde viveram e morreram os meus pais, e onde me propus morrer só, na mesma cama em que nasci e num dia que desejo distante e sem dor.”
Na actualidade não será fácil escolher o local e a forma como morremos, que de forma crescente e indigna ocorre numa cama ou maca dum hospital, longe dos que nos são queridos, de uma forma fria, mais fria que a própria morte. Hoje, ao contrário de um passado recente, só morre fora do hospital quem for apanhado completamente desprevenido ou por acidente. Mas a Carta de Direitos do Doente Terminal refere que o doente deve intervir nas decisões, exprimir os seus sentimentos, direito de ser tratado como uma pessoa viva até à morte, direito à morte sã e a não sofrer, direito a morrer em paz e dignidade … porque morrer em paz e dignidade constitui o último e derradeiro exercício da liberdade, contrariado de forma sistemática pelos que nos são próximos ou pelos profissionais de saúde.
A evolução tecnológica nos últimos anos permitiu diagnosticar e tratar precocemente doenças que naturalmente evoluiriam para a morte a breve prazo, transformando doenças rapidamente mortais em doenças curáveis ou minimizáveis, aumentando a cronicidade de outras doenças, retardando o momento da morte e aplicando terapêuticas para minimizar o sofrimento. Mas o mais dramático nesta questão é que criamos uma imagem de que todas as doenças são potencialmente tratáveis, e que se tal não acontecer é porque alguém ou algo foi negligente na sua actuação no elo da cadeia.
Por outro lado o Juramento de Hipócrates (com 25 séculos), a que os médicos se mantêm fiéis, refere “não ministrar a ninguém um fármaco mortal , ainda que mo peça, nem tomar a iniciativa de uma sugestão desse tipo”.
Assim, fazemos prolongar a vida, mas nem sempre mantendo uma qualidade suficientemente digna, questionando-nos o doente e a família se vale a pena continuar a viver.
O tempo em que o Índio americano adivinhava e escolhia o momento em que se isolava para se encontrar com os espíritos e deixar-se morrer lentamente sem comida ou bebida, já não existe. Seria esta opção uma qualquer forma de eutanásia, hoje absolutamente reprovada pela sociedade ou seria o último grito de liberdade, da minha liberdade, da minha escolha consciente ao adivinhar que o meu tempo acabava. Quando um marido ao fim de quinze anos de sofrimento (dele e da sua esposa) tem que pedir ao tribunal que se suspenda a alimentação e hidratação, para que ela finalmente possa morrer, não estará a liberdade a ser posta em causa ? Não foi demasiado tempo de sofrimento consciente? Terá a família dela legitimidade para o impedir? Aqui surge o problema, é que a doente, enquanto ser consciente, pediu para que a sua vida não se perpetuasse nestas condições, mas quando o fez não estava colocada perante a morte em definitivo. Ou seja, ao exprimir uma vontade em determinadas condições não quer dizer que, colocada objectivamente perante ela, eu queira continuá-la. O suicida perante o momento de saltar da ravina frequentemente se arrepende. É este o momento em que nos perguntamos se a eutanásia e a morte assistida (o que não é o caso referido anteriormente) deverão ser legalizadas e passarem a depender apenas da vontade livre do doente e do(s) executor(es).
Mas outro problema se coloca cuja fronteira nem sempre está bem delimitada, se eu resolver efectuar terapêuticas intensivas ou desproporcionadas à situação para prolongar a vida a qualquer custo estarei igualmente a cometer um crime igualmente grave.
A mesma tecnologia que nos permite salvar vidas e recuperá-las à sociedade pode em alguns casos salvar a vida e colocá-las a vegetar ou a sofrer isto é Distanásia.
Na realidade o doente terminal ou a sua família (no caso de o próprio não estar consciente) devem poder escolher o local e as condições de morte digna e sem sofrimento, sem que com isto se esteja a falar em morte assistida, que é bem diferente, porque neste caso apenas abandonamos as terapêuticas ineficazes e falamos de terapêutica com vista a diminuir o sofrimento, mesmo que estas como efeito associado possam apressar o momento final, aquele em que exercemos a nossa última vontade ou o nosso último grito de liberdade.
Classicamente a eutanásia define-se como um “conjunto de procedimentos (ou abstenção terapêutica) que tende a pôr fim à vida de um indivíduo atingido por doença incurável e penosamente suportada.”. A Eutanásia Activa, consiste na administração de substâncias capazes de provocar a morte, no sentido de acabar com a dor e sofrimento, sem conhecimento do doente e sem a sua autorização, sendo alvo de reprovação moral e judicial constituindo homicídio qualificado. No Suicídio Assistido, o próprio doente provoca a sua morte, orientado por um técnico, que coloca os meios à sua disposição, dado que ele sozinho nunca os obteria. Em termos jurídicos e sociais foi despenalizado na Holanda, não deixando cada caso de ser alvo de abertura de inquérito pelo ministério público. Alguns estados americanos deixaram de condenar os técnicos, mas na maioria dos países europeus continua a ser crime punido com pena de prisão. A Eutanásia Passiva, consiste na interrupção ou omissão de medidas tendentes a prolongar a vida, que já não são úteis e que causam grande incómodo ao doente e família, sendo no geral considerada opção eticamente correcta. A Eutanásia Indirecta, se é que é correcto falar em eutanásia, consiste na administração de fármacos analgésicos e psicofármacos que têm como função primordial aliviar o sofrimento, mas como efeito secundário ou por “duplo efeito” pode abreviar a morte, aceite por técnicos de saúde, moralistas, teólogos e juristas.
Quer a Eutanásia Passiva quer a Indirecta têm como pressupostos, aliviar a dor, o consentimento do doente ou familiar e fortes probabilidades de se estar próximo da morte. No fundo cumprem o primado do ” direito à sua própria morte” ao contrário do Suicídio Assistido ou da Eutanásia Activa.
Se a organização assistencial à volta de um doente terminal for eficaz é natural que o desejo e vontade de morrer surja naturalmente e mais tarde, mas em Portugal pouco tem sido feito para diminuir a dor e o desconforto, enquadrando os doentes no seu modo de viver, segundo os seus afectos e vontade com hospital de dia, acessos fáceis a consultas, desorganização mínima da rotina familiar, serviços domiciliários e de segurança social eficazes, reduzindo ao mínimo as hospitalizações e limitando as deslocações a um centro especializado, quando estas forem dispensáveis, ajudando a família, dando conselhos de forma a que o doente possa permanecer da melhor maneira no domicílio.
Agora que o cinema (“Mar Adentro” ou “Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos”…) e os media no geral pegaram de novo no tema é obrigatório que os técnicos o façam de forma séria e com bases científicas, para que se discuta muito mais a distanásia, que se vai fazendo um pouco por todo o lado, e talvez menos o suicídio assistido. Porque o primado da medicina é a grande vontade de lutar contra a morte, mas por vezes os técnicos têm que ser travados nos seus ímpetos e pensar que a morte é o nosso fim natural.
“…A morte do homem, a morte de cada homem, sendo um acontecimento natural não é um acontecimento trivial, não é nunca trivial. O fim natural da minha vida , a minha morte é para mim, como ser consciente, o mais importante acontecimento da minha vida; é por ser finita, por ser limitada no tempo, que a vida individual tem o grande valor que todos lhe atribuímos.”
Prof. Dr. Daniel Serrão
Por: João Santiago Correia