“Tantos ferros, tantos golpes, tanto sangue a espadanar!”
(citação de anónimo por Óscar Mascarenhas)
A esquizofrenia à volta do acordo ortográfico voltou a tomar posse de algumas cabeças. A responsável de uma editora dizia há dias num debate da RTP2 (Sociedade Civil) que estava a dar liberdade aos seus autores de utilizarem a grafia que entendessem, tendo em conta a liberdade criativa que não lhes podia negar. Para cúmulo a mesma responsável pela editora confessou que, num sentido educativo, estava a publicar as edições juvenis e infantis pela nova grafia. Da vontade de rir passei a uma sensação mais preocupante. Será que estas pessoas se enxergam? Será que nos querem fazer crer que a criação escrita depende da película da escrita, a grafia? Nesse caso, teríamos de ler Camões ou Fernão Lopes na grafia em que escreveram, voltar atrás da reforma de 1911 e retomar “Os Maias” e o Frei Luís de Sousa numa grafia que agora achamos surrealista. A grafia faz parte da criação ou é a forma que em cada época ela reveste? E suponhamos agora que os escritores decidem não deixar colocar as suas obras nos manuais escolares sem ser na grafia em que foram escritas! Já viram a confusão em que deixaríamos cair uma lei da República, com mantas de retalhos de várias cores de épocas contíguas? Haja lucidez: a grafia está para além da criação e os leitores têm direitos mínimos sobre um texto que querem ler. Pede-se pois às editoras: entendam-se e sejam coerentes. Pede-se aos resistentes antiacordo: defendam aquilo que entenderem, cumpram a lei e mudem os espelhos lá de casa, que eles enganam-vos. Os vossos textos não podem ser campos de batalha, porque neste momento combatem já contra moinhos de vento. Estamos em tempo de aplicação do Acordo, o da sua discussão passou.
Outro facto correlato é a situação de exceção em que vivem as publicações periódicas, jornais e revistas. Jornais há, como este em que escrevo, que, adotando a nova grafia para a globalidade do jornal, resolveram dar liberdade aos seus colunistas de escrever (ainda) pela grafia anterior ao Acordo. Não contesto esta decisão, que me parece razoável, se ela for inscrita e limitada no tempo e não como voz para um protesto. Esse espaço é outro. Como dizia há dias Óscar Mascarenhas, Provedor do Leitor no DN, esta medida só se compreende se for temporária, já que não pode haver, muito menos em jornais, duas normas simultâneas, em sentidos opostos e com o mesmo valor. Espero também que O INTERIOR estabeleça para os colunistas uma data a partir do qual a grafia se “normalize” definitivamente nestas páginas.
Esta questão traz à baila o caráter especial da escrita criativa, a literatura, campo da beleza e da excelência e da beleza por excelência e também da crónica jornalística ou do texto de opinião, a um nível inferior. Poderíamos pensar que a palavra literatura permitiria tudo, mesmo a liberdade ortográfica mas ela deve ser lida a partir da norma linguística estabelecida, incluindo a ortografia, mesmo que seja para ela ser aqui e ali ultrapassada. A ortografia não pode ser o fundamental da criação literária (muito menos da crónica), que aliás só criaria distrações e biombos incómodos se se deixasse “apanhar” pela recusa de uma norma ortográfica. De um modo geral em cada época o texto pertence aos leitores que dele se apoderam e o querem ler (com exceção dos especialistas) numa versão normalizada como lei e com valor de autoridade e aceitação geral. E a acessibilidade do texto só se consegue se a norma ortográfica num certo momento for única, a do tempo do seu leitor.
A literatura tem mais com que se preocupar. A quem espanta a campanha da FNAC para se trocarem “Os Maias” empoeirados lá de casa pelos livros da Stephanie Mayer? Apesar das edições gordas, a literatura está transformada hoje em dia em máquina de fazer argumentos de filmes que meia dúzia leem e os restantes seguem nas imagens em movimento. E cada vez é mais difícil criar hábitos de leitura em jovens que não veem a literatura como evasão. O encanto que sinto ao reler “Os Maias” para trabalhar esta obra com os alunos e que lhes tento passar sofre com a distância e a evolução entretanto ocorrida nos códigos literários e estéticos. É possível discernir no meio de tanta descrição ou análise psicológica que os alunos acham inútil a centelha do talento, a capacidade de estudo da alma ou simplesmente a arte de dizer? É uma luta.
E o que é que ainda nos atrai na literatura? Sem dúvida que a procura de uma mensagem que alguém, inspirado, soube descobrir e formular melhor do que nós, uma mensagem que consiga ao mesmo tempo uma leitura do presente e uma esperança para o futuro. Porque a literatura, nessa tentação que nos vem da procura da beleza primordial, é sobretudo essa esperança, algo que esperamos obter para ser melhores. Sem distrações e biombos, sem fogos fátuos, por mais “dignos” que eles pareçam.
Por: Joaquim Igreja