Há tradições que permanecem bem vivas apesar do passar dos anos e que ninguém sabe muito bem explicar a sua origem. Casal de Cinza é uma freguesia do concelho da Guarda que se distingue das demais pelo facto dos habitantes das suas sete anexas utilizarem uma lengalenga para melhor relacionarem as povoações.
Carpinteiro, Creado, Gata, João Bragal de Baixo, Pessolta, Senhora da Póvoa e Torre são as localidades em causa neste dito popular. Com 83 anos, Lucília Rodrigues recorda a lengalenga que lhe foi ensinada quando era criança: «O Carpinteiro disse ao Creado de João Bragal que fosse à Pessolta buscar a Gata para a Torre de Casal de Cinza», conta. Mesmo ao lado, Dorinda Brás, de 81 anos, também a aprendeu «de pequenina», quando a sua mãe lhe ensinou, lembrando-se ainda de ouvir os seus avós a cantarolá-la. Esta “jovem” garante que todas as crianças da freguesia «já a sabem», inclusive a sua neta mais pequena, «de quatro anos». Curiosamente, com o passar dos anos e fazendo jus ao velho ditado de que “quem conta um conto, acrescenta um ponto”, foram surgindo diferentes versões da mesma lengalenga. Assim, entre as gerações mais novas, a frase é trauteada de forma ligeiramente diferente: «O senhor João Bragal disse à Tia Pessolta para dizer ao Creado de Carpinteiro para trazer a Gata para a Torre de Casal de Cinza», indica Augusta Tomé.
Esta funcionária do centro de dia de Casal de Cinza garante que «sempre» ouviu esta lengalenga, «que vem dos tempos de antigamente», recordando ainda os epítetos que distinguem os moradores das diferentes anexas: «Papeliços os de João Bragal, guarda-chuvas os da Pessolta, relógios de pulso os de Creado, ladrões os da Torre, dançarinos os da Gata, bêbados os de Casal de Cinza e para burros os de Carpinteiro», ilustra, bem humorada. A sua explicação para estas diferentes alcunhas é simples: «Pelo que conhecemos, os da Pessolta andam muitas vezes de guarda-chuva», enquanto dos habitantes de João Bragal também se lembra de «andarem com aquelas samarras com golas grandes». Já os de Casal de Cinza tinham a fama de serem «um bocadinho amigos do copo», ao passo que os de Creado recorda-se de «andarem muitas vezes de relógio de pulso». Por último, na Torre, «antigamente, diziam que havia lá umas pessoas que eram muito amigas de roubar. Os da Gata tinham e têm a fama de bailarinos, os de Carpinteiro é que lhe puseram a fama de burros, mas outros têm o proveito», disparou numa tirada que arrancou gargalhadas às utentes do centro de dia, maioritariamente oriundas daquela que dizem ser a aldeia com mais moradores da freguesia.
Outra funcionária da instituição, Maria do Céu, residente no Creado, recorda os tempos da escola, então frequentada por 65 alunos, e as «rivalidades» entre os habitantes de Carpinteiro e de Creado: «Chegávamos ali ao cruzamento e corríamo-nos à pedrada uns aos outros», afirma com um sorriso. Outras duas utentes do centro de dia, Maria da Conceição, de 79 anos, e Ester Marques, de 88, recordaram algumas cantilenas típicas da sua juventude do Carpinteiro e da Torre, respectivamente.
Ricardo Cordeiro