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A Lei Fascista do Tabaco

Comecei a fumar no início dos anos 80, durante a famosa greve da tabaqueira que pôs os portugueses a comprar, durante semanas, uns horrorosos cigarros espanhóis. Tinham-se esgotado as últimas reservas das marcas nacionais e das melhores marcas estrangeiras, tinham acabado os cigarros açorianos, os charutos, as cigarrilhas, o tabaco de cachimbo. Começaram então a chegar toneladas de maços de “Fortuna”, uns cigarros tipo americano com um sabor que nunca encaixou nos gostos portugueses. Muita gente aproveitou para deixar de fumar, destino preferível à sorte de ter de consumir aquela “coisa”. Eu, agindo como tantas outras vezes ao arrepio do bom-senso ou do espírito do tempo, e apesar de odiar o “Fortuna”, tornei-me fumador.

Não devia tê-lo feito. Sabia que fumar fazia mal, e a mim ainda mais. Sofria, como sofro ainda, de bronquite alérgica. Durante alguns meses por ano só conseguia fazer uma vida normal com recurso constante a medicamentos. Não durou muito que precisasse de tomar um broncodilatador para poder fumar o primeiro cigarro da manhã, o primeiro dos trinta e depois dos quarenta ou mais que se iriam seguir durante o dia. Eram os tempos em que ironizava sobre o assunto: “dizem que o tabaco mata, mas nunca vi um morto a fumar”. Um dia, anos mais tarde, senti, como sentem quase todos os fumadores, que era a altura de parar.

Deixar foi complicado. Tentei primeiro marcas com menor teor de nicotina, mas rapidamente dei por mim a fumar três maços por dia. E havia outras coisas. Como vim a perceber, até porque se tornou público, em cada cigarro há dezenas de substâncias químicas diferentes. Muitas, sob o pretexto de acrescentarem sabor, têm como verdadeiro objectivo aumentar o grau de dependência do fumador. As tabaqueiras sabem que, para manterem a sua clientela, têm de lhe cultivar o vício. É por isso que têm perdido acções de indemnização propostas por fumadores atingidos por doenças provocadas pelo tabaco. Ao argumento “nós avisamos em cada maço que o tabaco faz mal”, é-lhes respondido “mas não avisam que vicia a este ponto”. Milhões de fumadores sabem que o tabaco lhes faz mal, que os mata, mas não conseguem, por causa desse truque sujo, deixar o vício.

Marquei dia e hora, com meses de antecedência. Era importante ir-me preparando psicologicamente para o meu último dia como fumador. Quando este chegou, fumei quatro maços de cigarros e um Havano. Era a despedida, mas também queria tornar mais suportável, de tão intoxicado, o primeiro dia de privação. À hora determinada, fez em Outubro oito anos, apaguei os restos do puro (um magnífico “Partagas”) e iniciei o resto da minha vida enquanto não fumador.

Tenho lido os escritos de Vasco Pulido Valente, Miguel Sousa Tavares e outros sobre a Lei do Tabaco. Chamam-lhe “fascista”. Dizem, eles ou outros, que o actual governo lançou o maior ataque contra as liberdades individuais da história da democracia portuguesa. Talvez seja verdade, embora tenhamos, pelo menos neste caso, de compensar esta perda com o ganho correspondente de liberdade por parte dos não fumadores. E não acho que seja correcto falar-se em fascismo. Fascismo é outra coisa. Fascistas serão, por exemplo, as técnicas utilizadas pelas tabaqueiras para aniquilar a autodeterminação individual dos fumadores ao ponto de estes, como Miguel Sousa Tavares e Vasco Pulido Valente, mesmo sabendo o mal que lhes faz o tabaco, os anos de vida que este lhes rouba, o risco acrescido que têm de morrer de cancro do pulmão, não conseguirem parar.

Por: António Ferreira

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