Ao primeiro olhar ressalta a cadeira. Só depois nos inunda o veludo vermelho das cortinas. Pesadas certamente. Não percebemos se estamos num palco dada a proximidade da cena. A cadeira é de madeira envernizada. Possui quatro pés. Os dois dianteiros alongam-se. Pernas de mulher disposta para, a qualquer momento, as cruzar ou as abrir levemente. Não tem braços. O encosto alonga-se numa espécie de díptico com duas pequenas travessas atrás. Não dobra como os dípticos habituais. Também não possui pinturas ou baixos-relevos que celebrem vitórias. Prolonga-se como uma mulher a quem apetece ser beijada e que para tal estende o pescoço. O chão é um paradoxo de azulejos azuis e brancos.
Uma faísca gélida transita entre o sangue denso de cada espectador e a vertigem descuidada do olhar. A vida poderia passar por ali. Alguém se sentaria na cadeira e encararia a plateia. Uma viragem na viagem. Um apeadeiro no meio do nada onde, perdidos, tomamos o primeiro comboio. Foi assim que ela chegou ao palco fora de horas. O público a levantar-se e ela a sentar-se. A cadeira molda-se ao corpo como uma segunda pele. O coração a bater na obscuridade das luzes. Pousa os pés descalços no branco frio dos azulejos. A fadiga é visível no rosto tenso. Fecha os olhos na certeza de que os passos voltarão atrás. Todos retomam os seus lugares.
São figuras amarelecidas pelo mofo da sala, como se a própria sala as habitasse desde sempre. Ela cruza as pernas e abre os olhos. Toda a plateia adormecera e ela não sabe há quanto tempo se encontra ali. É agora a espectadora singular de uma assistência embrulhada num silêncio dormente. Dali examina como se não pertencesse ao mundo dos seres e fosse apenas um pedaço de madeira envernizada. Ao volver a cabeça para trás o vermelho do veludo arranca-a daquele torpor. Uma dor intempestiva agudiza-lhe o peito.
Identifica cada uma daquelas pessoas. Duas crianças que um dia vira abraçadas ao saírem da escola enquanto a mãe de uma delas lhes dava indicações para a pose fotográfica perfeita. Era o primeiro dia de aulas e sorriam. A senhora gorda que atravessara a passadeira à sua frente, nessa manhã, sem conseguir esconder os olhos inchados. A sombra da terceira idade, intrépida, a encarar todos os rostos, porque se alimenta da alma há milénios. O banheiro que a notara, em tempos, confessara-lhe mais tarde, enrolada nas ondas com um naufrágio aos pés. O amigo que ninguém compreendeu e que um dia se entregou à morte. O taxista que a levara, criança ainda, da gare até casa e lhe deu a provar todas as luzes da cidade luz. A amiga, a amiga e a sua verdade. O rapazinho de bicicleta, de pele cristalina e lábios sempre rosados. Aquele casal de braço dado para a vida e a menina a correr ao seu lado. O homem com um cavalo sem sela a galopar no seu pulso.
Um grupo de gente informe que só existe. Um poeta. Mais dois ou três poetas. A mulher que acredita que o mundo é dela e do seu mau humor. Do seu mau amor também. O homem que busca o deserto na grande cidade. O rapaz que, ao fazer escala no aeroporto, se depara com um piano e, quase organicamente, se senta para tocar Nocturne de Chopin. A beleza. E era ainda manhã. O sem-abrigo que diz poesia nas carruagens do metro sem nada pedir em troca.
A mulher descruza as pernas e ao alongar-se deixa que o corpo escorregue devagar até ao chão. A dor no peito cedera. Num relâmpago toda a sala se ilumina. Abre-se a pesada cortina de veludo vermelho como uma veia cortada. A plateia desperta e sai sem notar que uma mulher, que se identificara com uma cadeira, acabara de se fundir no azul e branco raiado de sangue do palco da sua vida. Da vida deles.
Ninguém a beijou. No díptico ficaram gravados dois pés e um mapa onde não constava qualquer rosa-dos-ventos.
Por: Maria Afonso
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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