Os vasos sanguíneos de um rio também se fazem da firmeza dos homens. Eu vi homens dentro do rio, água até às virilhas, a quem chamavam pescadores de trutas. Sei de homens que se curvavam sobre o rio. Sorviam a água que lhes abrandava os cansaços. Uma inclinação de reverência como a honra que se dedica a certas pessoas. Ou ao divino. Uma profunda genuflexão a rogar claridade. Conheci corpos purificados no vigor da água como se um baptismo lhes lavasse as faltas.
A nascente borbulha no topo da serra. Choro morno de criança. Rochas à volta são gigantes. O uivo dos lobos no silvo do vento. O rio não se atemoriza. Desafia as leis da gravitação e solta as águas para norte. Como se a urgência de naufragar lhe assinalasse um mar mais contíguo. Por ali. Seguimos com ele numa rota de seda líquida. Todos temos premência de sal. Dividimos margens e levamos a água da nascente à foz.
Gravamos no xisto. Abrasamos o xisto. Picotamo-lo. Hoje ou há vinte mil anos. Levantamos verdadeiros painéis. Falamos de cavalos e auroques e dos nomes dos nossos pais. Inventamos a linguagem do tempo numa infindável mandala de luz. Erguemos um templo para acendermos paus de incenso e nos sentarmos no chão escaldante.
O suor a escorrer depois da caça porque sobreviver é primordial. Hoje não seriamos capazes de caçar. Há vinte mil anos sim. Mas resistir continua a ser imperioso. Expomo-nos a nascente, assim darão sempre connosco. O rio está sempre a chegar. Alaga o vale numa tranquilidade continuada. – Dá-me a humidade dos teus olhos. Ou a cor do primeiro amor – pedimos ao rio. Talvez necessitemos de outro baptismo nesta encosta sobranceira. Um pouco de água nas mãos em concha.
Mas onde nos acharemos se nos abandonarmos neste leito de rio sem margens? Não nos enfraqueçamos numa litania. Há que extrair o sangue do vazio da terra. Nem os trilhos gritados pelo canto da água nem os anjos complacentes acalmam a voz que sobe milhares de degraus. O tempo ateia a memória do rio. Uma mão calejada de produzir instrumentos ampara-nos a subida. Na encosta tomamos consciência da cor do rosmaninho. Há dias em que as águas ferem numa tonalidade lilácea a crescer no olhar. A foz logo ali. A vida inteira no xisto que a terra expeliu. Roçamos os dedos nos animais que nos cercam. Amamos as mãos que os gravaram. Louvamos a água que nos abriu trilhos de espelhos. Os pescadores de trutas escondem-se se numa sombra que se amplia. Os caçadores provocam rupturas. O prolongamento da arte e da vida grava-se hoje nas nossas mãos. Há quem levante mandalas de carvalho para as deixar repousar no chão de uma sala. Ali nos sentamos. O tempo cristalizado. A penumbra que nos abraça. A imensidão que nos abarca. Respiramos pausadamente a humidade que o rio nos concede. Morreríamos ali, nesse espaço sagrado, unidos ao cosmo para retornar à unidade. Hoje como há vinte mil anos. Somos a humanidade plena em cada ramo de carvalho. Os elos da eternidade. Vasos capilares a cobrir o véu das águas.
Aqui nos inclinamos e reverenciamos o divino.
Por: Maria Afonso
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