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A Inteligência, a Ganância e o Condenado

Crónica Política

Uma notícia recente não pôde deixar, por associação de ideias, de me trazer à memória as palavras de um amigo, com muitos anos vividos em África, a propósito da importância relativa da inteligência e da ganância na história da humanidade.

Contava esse amigo que em África há um animal, o macaco, que pode aniquilar, em bando, civilizações inteiras. Apenas porque gosta de milho. O problema é ser tão esperto e ladino que conseguiu, à falta dos seus predadores naturais, tornar-se numa praga quase impossível de exterminar. Até que um dia os africanos encontraram uma solução para o problema.

Cortam a extremidade de um coco, que depois esvaziam com uma colher, criando um orifício mesmo à medida do punho do macaco. Encordoam de seguida o coco e prendem-no de forma segura a uma estaca no meio da clareira. À vista dos macacos que aguardam nas árvores, vertem ostensivamente, para dentro do coco, uma mão cheia de milho. Depois afastam-se e aguardam. Assim que os macacos se sentem seguros, é a corrida ao milho. O primeiro a chegar mete a mão dentro do coco a apanha todo o milho que possa. Mas isso faz com que a sua mão já não possa ser retirada através do pequeno orifício. Assim que os africanos se aproximam, é a debandada geral. O único que não consegue fugir é o macaco tótó. Agarrado ao coco, bufa, grita, salta, ameaça. Mas não larga o milho. Enfiam-lhe um saco de serapilheira pela cabeça, para não morder ninguém, e de seguida empalam-no no meio do milheiral, à vista dos outros macacos. Na agonia do dia que resta, a macacada é subitamente dominada. Às centenas, assistem, em silêncio, nas árvores, ao martírio do seu companheiro. Enquanto ele geme e esperneia, não descem ao milheiral. E assim se salva a espécie humana. Com a ajuda, reconheça-se, da preciosa estupidez da macacada, que curiosamente nunca aprende. De facto, no dia seguinte outro macaco voltará a cair na armadilha e a servir de novo espantalho vivo no milheiral. Num ciclo que nunca acaba.

Ainda ninguém conseguiu perceber como um animal tão inteligente consegue simultaneamente ser tão estúpido. Mas os africanos retiraram, desta lição, uma moral: o macaco é o animal mais ganancioso a seguir ao homem e é por aí que o apanham.

A notícia que me fez recordar esta história foi a de um médico oftalmologista da Guarda que foi recentemente condenado por beneficiar de rastreios no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Segundo parece, armou-se em benemérito só para criar um esquema em que a sua empresa privada passou a fazer uns supostos rastreios às causas de cegueira a doentes do SNS. O objetivo consistiria em depois induzir esses doentes a irem ao seu consultório privado e a comprarem os óculos numa rede de óticas que será propriedade da esposa. Esposa essa que, pasme-se, também era sócia da empresa do marido, a tal que fazia os rastreios!

Não sei quem é mais atrevido, se o macaco da história ou o médico da notícia. Mas há uma coisa que pude apurar. É que o médico em causa foi finalmente demitido da direção de serviço e passou à condição de soldado raso, da qual muito provavelmente nunca deveria ter saído. E que a sua infelicidade não terá sido inferior à do macaco. Doravante terá muito mais dificuldade em deitar a mão ao milho que abunda no SNS.

O que me espanta é que no mesmo serviço trabalhou outro médico que há uns anos chegou a doar equipamentos no valor de dezenas de milhares de euros para tratar os doentes. Um pouco como se um macaco descesse ao milheiral e lá deixasse, em vez de tirar, umas toneladas de grão. Esse outro médico foi, desde então, alvo de sucessivas e indescritíveis perseguições. Mas acho que hoje, lá no alto da sua árvore, agarrado à maçaroca, é ele quem mais se ri dos africanos cá do sítio. Porque soube sempre, desde o início, que por cá os macacos, tal como o milho, não são afinal todos iguais.

Como diria um cínico a propósito da diferença entre inteligência e ganância, há mesmo milhos que sabem bem melhor na espiga do que no coco…

Por: Jorge Noutel

* Deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal da Guarda

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