O país vive uma paz podre, apesar da ilusória calmaria e dos anúncios sucessivos de que tudo vai bem e de certas convicções de que os portugueses vivem cada vez melhor. Essa podridão, escondida e entranhada no próprio sistema da governação, está como uma hiena para a putrefacta carne que come. Só existe porque a paz é aquilo que todos sabemos.
A democracia portuguesa sofre de uma crise de valores e de princípios que a abalam até às suas fundações, ameaçando atirá-la para um poço de decadência. Parece valer tudo. Os vários poderes soberanos apresentam, em graus mais ou menos diversos mas sempre intoleráveis, sinais evidentes de corrupção, falta de pudor e ausência de ética. A coisa é tão grave e a descrença tão profunda que, quando alguém fala em reformar tudo isto, arrisca-se a ser confundido com um vulgar passa-desculpas.
O poder legislativo, atolado em comezinhos esquemas de viagens, moradas e subsídios a granel, dá cada vez mais um ar de salve-se quem puder. No estertor da dignidade que lhe falta reforça o impedimento à candidatura de cidadãos independentes ao Parlamento. A preocupação é de regime e passa pela preservação dos lugares que servem de rampa de acesso a tudo o que represente poder, desde um emprego para a filha até um negócio bem protegido lá na santa terrinha de origem.
O poder judicial atingiu um estado de disfuncionalidade difícil de acreditar. Desde as cirúrgicas fugas de informação e detenção de suspeitos com direito a TV quase em direto, até aos vídeos de interrogatórios e suspensões de juízes alegadamente corruptos, resvalou para a praça pública e passou a concorrer em certos casos com a atividade circense. Se umas vezes é o tambor que espanta os pardais, outras é o clarinete que toca a reunir. A frase de Bertolt Brecht, de que «alguns juízes são absolutamente incorruptíveis, ninguém consegue induzi-los a fazer justiça», catapulta-nos ao divino de Umberto Eco e faz-nos perceber como «quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, não é que já não acreditem em nada, acreditam é em tudo. Até nos meios de comunicação».
O poder executivo, esse, acha que a democracia se faz sobretudo nas urnas e submete a sua ação ao puro e frio calculismo político. Despende grande energia a lidar com os escândalos que não consegue evitar. Faz pela vida, apoiando-se na velhinha máxima de Almeida Santos, o tal que chegou a ser presidente da Assembleia Municipal da Guarda e a quem homenagearam concedendo-lhe o nome de uma sala, que dizia: «Para os amigos tudo, tudo, para os inimigos, nada, e para os outros, cumpra-se a lei». Entretanto, o povo vegeta mas vai aguentando, à custa de umas migalhas a mais.
Valha-nos a consolação de irmos descobrindo que há pelo menos quem tenha ficado rico à custa da política, provando que ela afinal sempre serve para alguma coisa.
Divididos entre o dilema de rejeitar tudo isto e arcar com as consequências e riscos de uma revolta, ou tentar acreditar que sempre é melhor aquilo que temos do que nada, o povo protesta mas resigna-se, com a habitual tendência para ir pastando um dia de cada vez. Na sua eterna miséria, moral e material, comove-se pelo poder da precisão e sonha com tudo aquilo que condena. E quando vota, fá-lo com o coração e não com a cabeça, garantindo aos mesmos de sempre que tudo fica na mesma.
A minha mãezinha está farta de me puxar as orelhas por não ter ido para a política. Enfia-me pelos olhos adentro o mesmo dedo que usa para apontar o destino de alguns meus companheiros de escola, que hoje são isto e aquilo, e com dinheiro no bolso. Eu, perdido na guerra do tempo e descrente de tudo, já só penso em como escapar aos dentes da hiena. À falta de solução que me garanta o desejo, e porque já nem o pasto me sabe bem, só sonho em ser peixe em vez de carne. Nem que seja enlatado.
Por: Jorge Noutel