Arquivo

A Guarda aos 804 anos

Depois do discurso “cor-de-rosa” de Maria do Carmo Borges, António José Teixeira “desceu à terra” e apontou todos os males da cidade

Criar um “Forúm de Culturas” anual dinamizado pelo historiador e ensaísta guardense Eduardo Lourenço foi um dos muitos desafios deixados por António José Teixeira, director do “Jornal de Notícias” e “filho” da Guarda, que marcou a diferença na cerimónia solene comemorativa do 804º aniversário da cidade. Com um discurso politicamente incorrecto em dia de festa, o jornalista apontou o que a Guarda tem e não tem um século depois de Miguel de Unamuno ter passado por cá e verificado que afinal a Sociedade de Propaganda de Portugal tinha razão ao exclui-la do grupo dos 17 lugares que dizia merecerem ser visitados.

Com a pergunta «Um século depois, que guarda a Guarda?», António José Teixeira desencadeou um discurso que certamente abanou algumas cadeiras da sala da Assembleia Municipal. Embora considere que a cidade hoje é mais forte, «ultrapassou a guarita» e tornou-se «mais» habitável, luminosa e moderna, o jornalista também a vê «tão carregada de memórias como de esquecimento, despida de gentes, desprendida de talentos que não sabe, ou não pode, guardar». Embora a Guarda guarde saúde, ar puro e um «horizonte largo», guarda também a falta de médicos, de técnicos, de investidores, de «gentes que se reproduzam, gente nova que acredite que há vantagens em ficar e apostar». Teixeira defende ainda que, como «terra de emigrantes» e de passagem «para o litoral, para as Espanhas e além Pirinéus», a Guarda tem como «grande» desafio «prender os que passam, cativá-los a voltar e sobretudo tirar partido da diferença dos que nos procuram». Num tom absolutamente inquisidor, o director do “JN” disse ainda que as boas vias de comunicação que vão aproximando o país têm de servir para captar «atenções e interesses» para o património físico, histórico, ambiental, gastronómico, para «a castanha ou a morcela», mas também para cursos politécnicos ou superiores «de excelência (podem ser poucos, mas têm que ser muito bons, exigentes, de preferência únicos)», para centros de montanha «bem equipados e bem enquadrados» e para iniciativas culturais «ambiciosas, continuadas, que ganhem lugar no lote dos grandes eventos nacionais e internacionais». Daí a ideia do “Fórum de Culturas”, por considerar que a cultura e os lazeres são das apostas de «maior futuro» numa «guerra preventiva» contra a desertificação e na luta de afirmação da interioridade.

Maria do Carmo contra «fogachos de protagonismo»

Embora não tenha trazido no bolso soluções milagrosas, o jornalista acredita, todavia, que «é possível mobilizar massa crítica, identificar boas oportunidades, conceber projectos e assumi-los como causas de desenvolvimento», não ignorando que «é preciso ter os pés bem assentes na terra granítica, fazer parcerias, pensar e agir no pressuposto de que uma boa ideia pode ser um bom negócio». António José Teixeira disse ainda que «importa fazer de cada caso uma causa pública, envolver a comunidade, empresários, técnicos, académicos, na sua concretização», lembrando o caso de uma cooperativa de jovens, há 20 anos, que concebeu um projecto industrial de transformação da castanha. «Foi um exemplo de um projecto de importância estratégica que deveria ter mobilizado as instituições regionais», critica, salientando que o «veneno» dos poderes locais passa por uma «grande incapacidade de discernimento entre o interesse da comunidade, do concelho ou da região, e a ambição pessoal».

Com um discurso bem mais optimista, mas sem referência a qualquer obra feita ou por fazer, Maria do Carmo Borges, presidente da Câmara, preferiu falar do que é preciso para que a Guarda seja uma cidade de futuro. Para tal, «continuaremos a lutar com convicção, determinação e vigor na realização dos ideais e dos projectos que defendemos e concretizamos, sempre tendo presente o desenvolvimento da Guarda e do concelho». Sem alusão a projectos concretos, a autarca apenas realçou o «ânimo e vigor» que «inspiram» a acção do actual executivo e repudiou os «fogachos de protagonismos ou “passerelles” de vaidades nas quais apenas se procura instituir como moda o imediatismo, o discurso da crítica derrotista, fácil e cómoda, para atingir o fim proposto desde o início, ou seja, denegrir os projectos anunciados e as obras feitas, com a intenção de aniquilar a auto-estima dos guardenses». Maria do Carmo terminou afirmando que em 2003, a Guarda apresenta-se, representa-se e vive-se como cidade «sem fronteiras físicas, administrativas ou psicológicas», considerando-a um «espaço humano, jovem, dinâmico, aberto, comunicativo e inovador».

Homenageados surpresos

A cerimónia serviu ainda para a autarquia oferecer medalhas de mérito a funcionários do município e a algumas figuras ilustres. Andrade Pereira, advogado, ex-Governador Civil da Guarda ainda antes da Revolução dos Cravos e ex-deputado, foi um dos medalhados ao lado da jovem investigadora Marta Nunes. Impossibilitada de estar presente, a investigadora guardense na área da Neurobiologia, disse antecipadamente que é um «enorme orgulho saber que o meu trabalho é reconhecido na Guarda», tendo mesmo ficado «surpreendida por as pessoas terem reconhecido um trabalho deste âmbito». Também Pinharanda Gomes, com inúmeras publicações dedicadas à literatura, história religiosa e à antropologia cultural, fez parte do grupo, mostrando-se surpreso porque «não era hábito darem a medalha a pessoas que não fossem do concelho, como é o meu caso», revela o sabugalense que apenas está ligado à Guarda pela sua obra. Maria de São José Tavares seguiu o rol. A médica da Guarda que coordena desde 99 o Centro de Atendimento a Adolescentes “Aparece”, em Lisboa, já foi condecorada este ano pelo Presidente da República e mereceu agora a distinção da cidade que a viu nascer. Um gesto recebido «com surpresa e com um grande sentimento de reconhecimento e alegria por poder partilhar com a minha cidade uma homenagem que me foi prestada em Março deste ano, no âmbito de um trabalho que tenho feito em Lisboa». Pires da Fonseca também teve direito à medalha, talvez, diz, «por ser o advogado mais antigo da Guarda com 50 anos de profissão ou pelo facto de ter assumido a provedoria da Misericórdia durante vários anos». Por fim, a condecoração coube ao escritor Bigotte Chorão que, embora tenha nascido na Guarda, desde sempre viveu em Lisboa e por isso se sente espantado com a distinção. Apesar de «inesperada», considerou-a um «acto de generosidade para com um filho da Guarda que me acompanha com a sua própria sombra».

Rita Lopes

Sobre o autor

Leave a Reply