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A força viva

Jogo de Sombras

Deve haver, por estes dias, um molesto pivete a queijo no Terreiro do Paço, por estarem ainda mal arejadas as bagageiras das limusinas do Estado. Acabaram de percorrer centenas de quilómetros na sacrificada romagem dos resignados titulares. Passaram Fevereiro, serra acima, todos os fins-de-semana, a caminho de festas e feiras de pastores e queijeiras, em lugares estranhos ao ouvido – Fornos de Algodres, Manteigas, Celorico – mas cuja direcção os motoristas sabiam de cor. Porque a verdade é esta: seja qual for o governo, seja qual for o estado da Nação, não há Inverno que não traga ministros e secretários de Estado, às dúzias, ao circuito do queijo da serra. Poucos chegam à paisana – quase todos se apresentam em carro oficial e com comitiva, a pedir honras (e, claro, a fazer-se ao respectivo). Alguns trazem mesmo em descaramento tanto ou mais do que levam em queijo: que justificação terá dado, por exemplo, o secretário de Estado das Pescas para vir em visita formal a uma região onde só existe truta (e de viveiro)? E o da Defesa? E o da Justiça? E o do Desporto? E o da Saúde? E o dos Assuntos Fiscais (que deve ter-se escapulido para cá à sorrelfa da somítica patroa)? Eles vêm todos. Podem nunca abeirar-se durante o resto do ano, quando há carências, quando é para ouvirem queixumes, quando adivinham que uma reivindicação ou uma pergunta incómoda os aguarda. Mas aparecem no preciso instante em que sabem que as boas maneiras não os deixarão voltar sem o porta-bagagem atulhado. É claro que, na necessidade de justificarem o passeio, sempre ouvem o que não desejariam e, entre uma côdea de centeio e dois copos de carrascão, descaem-se: aceitam pedidos, tomam recados, fazem promessas ou acedem a uma inauguração. E como uma dívida assumida com a mala do carro a abarrotar de queijo vale o mesmo, em honra, que um compromisso no jogo, os que arriscam não saldar passarão a figurar na difamante lista dos embusteiros e esconjurados e, se alguma vez regressarem, não terão direito a dignidades protocolares e seguirão de bagageira vazia (ou pagando, a quase quinze euros o quilo, como o comum dos mortais). É por isso que o queijo da serra representa a nossa mais austera mas indefectível força viva. Conquista maiores proveitos para a região numa meia-manhã a casqueiro e tinto do lavrador do que uma Presidência Aberta em oito dias de «magistratura de influência» – que não tem cheiro nem, provavelmente, sabor.

Por: Rui Isidro

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