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A Excomungada

Em criança ouvia o meu pai ao volante a referir-se a uma tal “excomungada”, sempre que queria comparar a topografia de alguma estrada manhosa. Vim a saber que lá para os lados de Pinhel existia uma estrada que ligava a Figueira de Castelo Rodrigo, que, por ter um traçado muito cheio de curvas e contracurvas e por ser perigosa, recebeu este cognome. Não me recordo se alguma vez me lá levou, provavelmente sim, mas é daquelas estradas que qualquer automobilista desejaria evitar a não ser que fosse em passeio de domingo. Hoje é um pouco menos perigosa, mas compensa o risco com uma paisagem belíssima sobre a serra da Marofa e vale do Côa. São vinte quilómetros de tortuosidade para percorrer num estado de relaxamento, seja de carro ou de bicicleta.

No caso do autor destas linhas este troço da EN221 costuma ser feito de bicicleta com saída e chegada à Guarda e costuma ter dois objetivos: o primeiro é disfrutar de toda a beleza natural que é atravessada por esta via; o segundo é fazer uma visita à Aldeia Histórica de Castelo Rodrigo.

Relativamente ao primeiro, se o tempo ajudar, é uma viagem fantástica, principalmente no troço em questão. Para além de toda a beleza natural há ainda muita paz, bem-estar, algum suor, claro, e imenso oxigénio que embebe o ar de veludo. E é nestas alturas que medito acerca de imensas coisas. Nestes vinte quilómetros de curvas fui ultrapassado por meia dúzia de veículos, também eles sem muita pressa, sendo por isso um percurso amigo dos ciclistas; por outro lado, fazer este trajeto numa grande cidade teria mais de prejudicial do que benéfico, com as micropartículas poluentes a assaltarem os pulmões dos desportistas ou com a possibilidade bem real de um taxista/camionista/filho-da-mãe nos poder deixar maltratados, uma vez que os ciclistas ainda são encarados como E.T.’s (mas com alguns deles a comportarem-se também muito mal, fazendo da lei do “a-metro-e-meio-da-berma” uma imposição que atiram à cara dos automobilistas), ou seja, há por aí muita falta de civismo de parte a parte, mas, por ali não há nada disso porque o traçado e a paisagem não convidam a parvoíces.

Voltando à vaca fria. Depois de atravessar o Côa, a meio do trajeto, inicia-se a subida para Castelo Rodrigo onde os xistos torcidos e retorcidos, assim como as ribeiras que correm para o Côa, nos convidam a serpentear aquele vale. Poucos quilómetros à frente uma dobra enorme em xisto indica ao olho do geólogo, mas também do leigo, que forças enormes estiveram por trás da edificação da Marofa que se pendura por trás dela. A estas forças enormes juntaram-se elevadas temperaturas e com uma enorme pitada de tempo puderam assim dobrar a rocha. Chama-se Tectónica de Placas e esta colisão já tem umas boas centenas de milhões de anos. Já me está a fugir a conversa. Voltando ao tópico.

Muitas mais curvas depois e uma última subida íngreme final chego à renovada, bela e bem cuidada Aldeia Histórica objeto da minha viagem. Anseio por sentar-me na esplanada do Páteo do Castelo. O dono, um simpatiquíssimo belga, há muitos anos que, de vez em quando, me atura. O seu estabelecimento tem uma enorme variedade de chás que podem vir acompanhados de uns excelentes biscoitos de amêndoa. É o que peço sempre. Às nove da manhã estou sozinho, por isso açambarco logo a melhor mesa onde aproveito para descansar e saborear o momento: a paisagem deslumbrante a perder de vista (por alguma coisa estou num castelo… Rodrigo), o chá de frutos vermelhos, os bolinhos acabados de fazer, uma paz e sensação de felicidade de fazer inveja a uma imensidão de ciclistas que à mesma hora tentam praticar desporto numa qualquer cidade do litoral. É chegada entretanto a hora de me pôr ao caminho. Para lá vai custar mais, mas vou recarregado.

Cada vez gosto mais de poder viver no interior e usufruir da excelência com que ainda nos brinda. Saibamos aproveitá-la.

Por: José Carlos Lopes

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