A longa maratona negocial que na semana passada permitiu alcançar um acordo entre Londres e os restantes 27 Estados-membros da União Europeia (UE) foi só o primeiro passo do muito que está para vir. O que aí vem ninguém saberá prever com exatidão. Estaremos perante mais uma caixa de pandora, novamente aberta pela visão inconsequente dos atuais líderes europeus? Provavelmente.
David Cameron, primeiro-ministro britânico, elencou em tom vitorioso o conjunto de concessões feitas pelos seus parceiros europeus, proclamando que este compromisso garante «ao Reino Unido um estatuto especial na EU». Asserção que causou exagerados incómodos, dado que o problema não passa necessariamente pelo privilégio britânico. Até porque, como bem notou Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, o Reino Unido «teve sempre um estatuto especial».
O problema é que foi anunciado que o pressuposto de uma «União cada vez mais estreita», que consta dos preâmbulos dos tratados, deixa de vigorar para Londres. Apesar de as consequências legais serem mínimas, esta exceção representa uma mudança substancial face ao espírito que norteou todo o processo de construção e integração europeia. E outros estados invocarão tal excecionalidade. Tínhamos a Europa a duas velocidades. Agora temos uma Europa arrumada em gavetas e o Reino Unido está na de cima.
Claro está que os líderes europeus teriam de pagar um preço para manter no clube europeu um dos seus mais determinantes membros. Sem o Reino Unido, a UE seria cada vez menos atlantista e mais continental. Ou seja, seria ainda mais germânica e menos anglo-americana.
Mas subsistem problemas vários no horizonte. Até porque o “Brexit” não está afastado. Bem pelo contrário. Cameron terá de passar por uma dura campanha até ao referendo de 23 de junho. Além do UKIP de Nigel Farage, e embora a posição oficial do Executivo seja favorável à “permanência”, David Cameron enfrenta divisões no seio do seu Governo com pelo menos seis membros a fazerem campanha pela “saída” da UE.
Se perder o referendo que o próprio inventou para tentar conter o avanço eleitoral das forças eurocéticas, o acordo conseguido por Cameron fica sem efeito prático. E mesmo que vença, Cameron poderá ter de explicar pequenas alterações ao já anunciado, uma vez que os parlamentos nacionais têm ainda de aprovar o “novo acordo” forjado em Bruxelas.
Tão ou mais desanimador foi a Europa ter dado nova mostra da sua falta de vigor democrático e humanista. A Europa intransigente no rigor orçamental é a mesma que cauciona o confisco dos refugiados e que aceita regressões na liberdade de movimentos e nos direitos dos trabalhadores comunitários. E apesar de ter adiado a discussão da crise dos refugiados, aprovou novas restrições à chegada de migrantes
Em março, Bruxelas e Ancara regressam ao tema dos refugiados e lamentavelmente não parece difícil antecipar mais concessões e regressões. Os valores estão a ser metidos numa gaveta com fundo falso. Será difícil recuperar a identidade alienada.
Por: David Santiago