Cinco da manhã. Toca o despertador. Na garagem tudo pronto para a minha partida. A Luna vê-me passar àquela hora e interroga-se onde irá o dono. O dono ouviu falar de uma via, só para ciclistas e caminheiros, resultante da reconversão da antiga linha férrea do Dão e vai ter que ir experimentá-la.
Viseu, seis e um quarto da manhã, está fresco. Próximo da rotunda da fonte cibernética
há um parque onde deixar o Land. A ecopista inicia-se logo ali, “disse-me” o Google Earth. Estou sozinho e ansioso por meter-me ao caminho. De Viseu à terra de Salazar, passando por Tondela, numa extensão de 50 quilómetros. A coisa promete. Uma linha férrea obedece a determinados valores máximos de pendente, pelo que não me esperam nem subidas nem descidas acentuadas. Ainda não tinha percorrido dois quilómetros e já um coelho que por ali andava me cumprimentou de fugida. A sensação de paz é grande e a expectativa também. O primeiro par de quilómetros fica completamente encaixado em Vildemoinhos e na margem direita do rio Pavia. Está tudo tão bem arranjado e limpo! Dali até Tondelinha e Figueiró é sempre a andar, mas ainda há muitas casas, alguns cruzamentos com estradas, sempre muito bem sinalizados e dando prioridade a quem circula na Ecopista. Pelo sim, pelo não, bandas sonoras ou barreiras, obrigam também os ciclistas e viandantes a abrandar nesses pontos mais críticos.
A estação de Figueiró, já requalificada e sede da Junta de Freguesia, é o melhor ponto para quem quer iniciar a sua viagem, porque a partir daqui as barreiras que aparecem são mais fáceis de transpor e, por outro lado, a presença humana abranda um pouco e permite entrar na paisagem campestre. Túneis iluminados, pontes que deixam ver para todos os lados, incluindo para baixo, pontos quilométricos a cada 500 metros (o que se pode tornar uma tortura, mas permite a fácil localização em caso de emergência), bancos para descansar e desfrutar da paisagem, aparelhos para exercícios, tudo feito a pensar no bem-estar dos utentes. Passo por algumas pessoas, como não tenho campainha, uma tosse na hora certa, uma mudança metida ou um assobio fazem as vezes, mas do susto pregado por um tipo numa bicicleta de estrada, àquela hora, não se livram. Faz-lhes bem. Ativa-lhes a circulação.
Entretanto, o ruído dos pneus e dos pedais, naquele enquadramento quase parecem dizer: “Pouca-terra, Pouca-terra”. Imagino gerações, há mais de um século, a passar pelo sítio onde eu agora me divirto, em comboios apinhados, sem ar condicionado, mas também sem pressas. Do que conversariam? Com certeza que de bancos falidos e cheques carecas, FMI, terrorismo, deslocalizações e desemprego não seria seguramente. Passo em Torredeita, à frente a A25 corta a antiga linha, resta à mais vetusta contornar a mais nova no viaduto mais próximo, e retomar o traçado do outro lado, embrenhando-se, de seguida, na floresta. Ao longe vejo um vulto, aproximo-me, é uma perdiz, cruzamo-nos e ela nem se dá ao trabalho de fugir tal é a paz reinante por ali. Chego a Farminhão, mais uma estação em bom estado de conservação. Uns quilómetros à frente e passo por um túnel com 144 metros, dando a impressão de que estou a entrar noutra dimensão, com a sua iluminação à “Twilight Zone”. A meio deste, a via muda de vermelha para verde. Parada de Gonta, Sabugosa, Canas de Santa Maria e Tondela são já a seguir.
Reaparecem as povoações e as pessoas. Para lá de Tondela até ao Vimieiro regressa a natureza em força. Entretanto, o rio Dão, à minha esquerda, encaixado lá em baixo no vale, não me larga mais. Esta via que contorna elegantemente o relevo, embala-me, envolve-me e eu embalo, “prego a fundo”, aproveitando a longa descida. Passo por Nagosela e Treixedo. Mais à frente, a vertigem, uma linda ponte com 130 metros de vão e com o habitual fundo, furado, em grade, a deixar-me ver o rio entretanto parado pela albufeira da Aguieira. Não me sinto muito à vontade para olhar para baixo, por isso em frente que atrás (não) vem gente! Mas vale a pena, é lindo. Santa Comba Dão aparece-me à direita, já falta pouco, mas o que falta é sempre a subir até ao Vimieiro. Chegado lá, subitamente a via acaba sem explicação num caminho de terra. Avisto a linha da Beira Alta e não tardo em perceber porquê. Provavelmente algum burocratazinho ligado à REFER, lá por Lisboa, não deve ter permitido que a Ecopista tivesse um fim decente, que seria terminar na gare do Vimieiro. São oito da manhã, um casal apresta-se a fazer o percurso inverso. Saúdo-os na gare. Desejo-lhes que se divirtam, digo-lhes maravilhas da via. Sento-me, como, bebo e sigo de bicicleta para Penacova e daí para Poiares. Vou à churrasqueira da minha infância, no sítio das Medas. Farei o percurso inverso, de tarde, de barriga cheia. Chegarei exausto, mas com um sorriso nos lábios. Voltarei.
Por: José Carlos Lopes
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