1. O Governo acaba de aprovar uma «Proposta de Lei», para discussão e votação na AR, onde define os critérios que determinarão o processo de fusão/redução de freguesias, tendo deixado na penumbra – mesmo em termos de discurso político público – toda a questão do sistema de governo e configuração institucional da democracia local, formulada, aliás, no famoso «Documento Verde». Pelos vistos, mais uma vez o sistema de poder autárquico vai ficar igual ao que sempre foi. Com excepção de umas quantas freguesias, por imposição legal desta maioria.
2. Trata-se de um enorme recuo do Governo. Aliás, na linha da boa tradição transformista: muda-se alguma coisa para que tudo fique na mesma. Mas, em boa verdade, quase se poderia dizer que este é um transformismo mediaticamente «aggiornato»: anuncia-se que se vai fazer uma grande reforma (para «troika»ver) para, depois, dizer que, por culpa dos «Velhos do Restelo», ou da intransigente oposição, nada (ou quase nada) pôde ser feito.
3. Ora eu creio que à falta de vontade real de fazer algo nesta matéria se junta alguma incapacidade de negociação e um «decisionismo» democraticamente pouco interessante e politicamente pouco eficaz. Sobretudo, sabendo-se que o PSD e o Governo conhecem a posição reformista do PS nesta matéria, ou seja, que um entendimento entre os dois grandes partidos não seria muito difícil (apesar de se saber também que o CDS/PP não faria vida fácil ao seu parceiro). Posto isto, alguém poderá questionar o PS acerca de uma sua aparente passividade ou falta de iniciativa nesta matéria. Mas a verdade é que, depois do PSD ter incendiado o poder local com os anúncios grandiloquentes e com o seu «decisionismo», ao mesmo tempo que se preparava para transformar a reforma em mero retoque de cosmética, não terá o PS grande margem de manobra para se meter num vespeiro que não ajudou a criar. Até porque nesta matéria a sua posição é, desde há muito, conhecida, tendo vindo a ser reiterada em sucessivos programas eleitorais (como aconteceu, por exemplo, com o último).
4. Reconheço que a questão da reforma do poder local não é uma questão fácil. Estamos a falar de quase 60 mil eleitos, de 308 Municípios e de 4259 Freguesias. De uma realidade altamente complexa, pelo envolvimento de tantos agentes, interesses e idiossincrasias no sistema. De resto, a democracia local desempenha um papel fundamental não só porque fornece soluções políticas e administrativas de proximidade para a resolução dos problemas (policies), mas também porque contribui para a formação de uma mais robusta sensibilidade democrática do cidadão. E é claro que nada disto é incompatível com uma melhor organização do sistema institucional do poder autárquico, com a sua racionalização e com o melhoramento da sua eficácia. É precisamente por isso que muitos são os que desejam sinceramente que haja uma profunda reforma do sistema. Mas é por isso também que a reforma de um sistema tão importante, tão complexo e tão sensível exige um método apropriado e uma sensibilidade negocial muito apurada. Exige sobretudo um intenso estudo das soluções e uma intensa negociação com o poder local e as suas associações representativas. Nesta esfera, o «decisionismo» não é bom conselheiro: provoca entradas de leão e saídas de sendeiro (até rima, mas é verdade). O que, pelos vistos, já está a acontecer. A passagem do «Documento Verde» para a actual «Proposta de Lei» é isso mesmo que representa. A reforma do poder local, podendo ser feita por lei da Assembleia da República, uma vez que, segundo a Constituição, as atribuições e a organização do poder local são definidas por lei da AR (art. 237), poderia ter sido objecto desta mesma «Proposta de Lei» que agora vai à Assembleia da República. Mas não foi.
5. Não sendo conhecidas negociações entre o PSD e o PS, esta seria a boa ocasião para dar início a uma negociação consistente no âmbito da Assembleia da República. Mas não. Isso não aconteceu! E provavelmente já nem poderia acontecer visto que o trabalho de fundo essencial, a desenvolver com o poder local, não foi feito. Talvez por isso esta «Proposta de Lei» tenha ficado reduzida a tão pouco. E talvez (também) por isso o PS nem sequer tenha margem para entrar no mérito da questão com vontade produtiva.
6. Há não muito tempo, verificou-se, no nosso País, um coro tonitruante de intelectuais defensores acérrimos do «decisionismo». Alguns desses continuam por aí a perorar nos diversos interfaces da comunicação. Mas já não acerca das virtudes do «decisionismo». E não certamente por causa dos péssimos resultados que o «pioneiro» do «decisionismo», um italiano chamado Bettino Craxi (e sobre o qual escrevi, em 1985, no DN»), obteve com esta sua «filosofia da acção» política. Talvez porque o «indecisionismo» do «doce» Guterres já lá vai e, também, porque a determinação de Sócrates os assustou um pouco, apesar de o elogio do «decisionismo» ter regressado quando este foi politicamente obrigado a ceder em vários «dossiers». Mas a verdade é que, agora, acaba de regressar um novo e mais silencioso «decisionismo» (ao que dizem, protagonizado pelo Ministro Miguel Relvas). E os resultados estão, uma vez mais, à vista: «entrada de leão, saída de sendeiro».
Por: João de Almeida Santos
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia