1. Está em curso um processo de reforma global da administração local. As suas linhas gerais constam de um documento intitulado «Documento verde da reforma da administração local» (http://www.portugal.gov.pt/pt/GC19/Documentos/MAAP/Doc_Verde_Ref_Adm_Local.pdf), promovido pelo Governo. O documento aborda as questões centrais do sistema institucional da nossa democracia local, fornecendo até números interessantes. Por exemplo, ficamos a saber que temos, em Portugal, 22.721 eleitos locais, sem contar com os membros das Assembleias de freguesia, que, aliás, são várias dezenas de milhar. Na minha opinião, o documento verde (com capa azul) deveria incluir o número destes eleitos, por uma questão de respeito institucional. Mas também para dar uma ideia mais concreta do número efectivo dos agentes políticos de origem electiva envolvidos na democracia local. Mais de 50 mil!
2. A questão da constituição do governo local volta a estar em cima da mesa. E a proposta do Governo é idêntica à que foi, a seu tempo, defendida pelo PS: executivos homogéneos. E executivos mais pequenos do que os actuais, já que o documento prevê uma forte redução do número de vereadores (e de dirigentes administrativos locais). Por sua vez, também está previsto que o Presidente da Câmara seja automaticamente o líder da lista mais votada para a Assembleia, que, depois, recrutará os vereadores dentre os deputados municipais. Deixa, pois, de haver, em termos de executivo, vereadores eleitos directamente, sendo, portanto, natural que o Presidente passe a poder remodelar o executivo a qualquer momento (à semelhança do que acontece com o Governo). Entretanto, está também previsto o reforço da capacidade de fiscalização das Assembleias Municipais, sendo certo que haveria necessidade de as dotar de uma capacidade que hoje não possuem, ou seja, a de iniciativa política no plano das chamadas «policies», já que, neste plano, e nos termos da lei, a capacidade de iniciativa cabe sempre ao executivo. As futuras Assembleias serão certamente muito mais pequenas já que diminui o número de freguesias (e não porque diminui o número de elementos dos executivos municipais, como se diz no documento). Com efeito, sendo o número de deputados municipais determinado pelo número de freguesias (n. º deputados eleitos directamente = nº de freguesias + 1), diminuindo estas, diminui, no dobro, o número de deputados municipais. Vejamos um exemplo. A Guarda tem 111 Deputados municipais. Imaginemos que o n.º de freguesias passa de 55 para 24: os deputados passariam, assim, de 111 para 49 (24+24+1).
3. Mas há uma orientação de fundo, no documento, tendente a esvaziar de poder sobretudo os municípios mais pequenos, que vêem reduzido o número de vereadores para metade e, ao que parece, verão também diminuir o número de dirigentes administrativos ao mesmo tempo que diminuirá também certamente o número de freguesias. A tendência que parece estar inscrita nestas medidas, até atendendo à hipótese de reforço das competências e da escala das freguesias, parece ser a de reduzir os pequenos municípios à dimensão de uma freguesia com competências reforçadas. Por exemplo, um município com 4000 mil habitantes poderá, no limite, ficar reduzido ao Presidente, a um vereador (a tempo inteiro), a um chefe de divisão e a uma só freguesia.
4. A complementar esta orientação, é manifestada a clara intenção de reforçar as competências das Comunidades Intermunicipais-CIM’s, com funções provenientes quer do poder central quer dos próprios Municípios. Estas Comunidades existem desde 2003, tendo sido criadas pela chamada Lei Relvas. São instituições geradas electivamente a partir dos municípios e possuem competências supramunicipais. Surgem como resultado da vontade dos municípios que as integram, têm coerência territorial, uma vez que têm de ser contíguas e corresponder às NUT’s de nível três. Os seus corpos dirigentes políticos são integrados por dirigentes municipais (Presidentes de Câmara e Deputados Municipais), sendo dotadas de um pequeno staff profissional que apoia a direcção política. Trata-se de instituições políticas que têm condições para ver reforçadas as suas competências e para as exercer com coerência visto que os seus agentes políticos estão, por razões óbvias, bem inseridos nos problemas das regiões. Permanece indeterminado o destino dos distritos (agora já sem Governadores) e das Assembleias distritais (sem reais funções)…
5. O debate tem afunilado excessivamente, a meu ver, para a questão da redução do número de freguesias, quando ele deveria estar centrado no complexo institucional da democracia local, das freguesias às CIM’s. Só assim é possível ver com rigor as implicações das alterações em curso e decidir em profundidade acerca de uma reforma que só peca por tardia. É que o nosso modelo autárquico foi pensado, por um lado, num período de grande agitação política e, por outro, tendo em conta a necessidade de um forte envolvimento da comunidade no processo político quer por razões de aprendizagem quer por razões de inclusão e integração política. E a verdade é que a situação, hoje, já é completamente diferente, pelo menos nos aspectos referidos.
Por: João de Almeida Santos
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia