No início do século XX, quando Eça publicou A Cidade e as Serras, a cidade era claramente a oposição do campo e, por metonímia, o homem rústico a oposição do citadino. A dicotomia cidade – campo é uma das mais marcantes da cultura ocidental. A um e a outro espaço (físico e social) são associadas características diferenciadoras, sejam elas positivas ou negativas, e a sociedade está habituada a viver no dilema que não permite deslindar a misteriosa questão de ser melhor o campo ou a cidade.
No concelho de Sátão, distrito de Viseu, há 94 pessoas que decidiram quebrar a ancestral oposição. À equipa coordenadora do projecto Interiormente afirmaram que eram rústicos e citadinos ao mesmo tempo, usufruíam do que de melhor tinham os dois espaços, durante todo o ano, e não estavam dispostos a prescindir disso (ver nota em http://www.facebook.com/#!/interiormente). Aproveitam a cultura erudita das urbes onde trabalham, assim como a etnográfica da aldeia que escolheram. Vão ao cinema e plantam couves, usam gravata e fazem BTT, almoçam em restaurantes japoneses e grelham sardinhas com pimentos.
Com a melhoria das vias de comunicação, talvez não seja já lícito pedir às pessoas que optem pela cidade ou pela aldeia. É possível ter vida nos dois sítios, em alternância constante, como fazem estes moradores “flutuantes” da aldeia do Avelal. Talvez esteja a nascer uma nova narrativa que pode revitalizar muitas das moribundas aldeias de Portugal. Talvez esteja a ser encontrado um novo papel para a aldeia: espaço de fruição, descanso, relações humanas, contato com a natureza e cultura, que não compete com a cidade mas que coopera com ela, de modo a proporcionar às pessoas uma vivência mais rica.
É urgente encontrar e definir um novo papel para as aldeias, sob pena de estas desaparecerem e levarem consigo, irremediavelmente, uma parte importantíssima das nossas raízes culturais. O nosso país, desequilibradíssimo em termos demográficos, tem de apostar no desenvolvimento regional, criando uma rede forte de cidades médias, economicamente capazes de fixar população activa, que cooperem entre si (sim cooperar, e não competir, como é hoje habitual preferir-se). É essa população que pode depois ser incentivada a reconstruir e reativar todo um enxame de aldeias que gravita à volta desses núcleos urbanos, para seu próprio benefício. É essa população que pode depois ir à aldeia, descansar nela, nela se divertir (sem ser preciso consumir), aproveitar da sua natureza, do seu espaço, do seu tempo, da sua segurança, envolver-se na sua vida cultural e desportiva, conviver nela como não é possível na cidade, e também trabalhar nela (em muitas aldeias, as Juntas de Freguesia pagam Internet sem fios para todos os habitantes e visitantes, como num campus universitário). Em suma, trata-se de VIVER (n)a aldeia, ao mesmo tempo que se vive (n)a cidade. Não se trata de turismo, trata-se de um envolvimento nas duas realidades, uma simbiose social aperfeiçoada.
Daniel Joana, coordenador do projeto Interiormente, carta recebida por e-mail