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A camioneta de carreira da minha aldeia

Sinais do Tempo

Um destes dias, de calor envergonhado, cruzei-me com a camioneta da carreira e imediatamente o meu pensamento foi transportado ao passado. A um passado tão passado em que só o comboio fazia o transporte da aldeia para a cidade. E lá ia eu de mão dada com a minha mãe, com um balde e uma pá na mão, chapéu na cabeça por causa das insolações e um relógio de brincadeira no pulso esquerdo. Passos curtos, mas rápidos, acompanhavam a minha mãe, que carregava uma ceira de junco, com o farnel e as toalhas de praia. Recordo-me do comboio com carruagens verdes e bancos corridos de madeira envernizada. Mais tarde, o comboio deu lugar à automotora, que entretanto se esfumou e com ela desapareceram os carris de aço, vendidos a um qualquer milionário do ferro-velho e assim a linha foi encerrada.

Lembro-me das guerras travadas para terminar com o monopólio de transportes da CP na aldeia e arredores, lembro-me das voltas, dos incómodos, dos ofícios, das irritações trazidas para casa, em nome de melhor acessibilidade e mobilidade, em nome dos miúdos que tinham que ir à escola. O meu pai, que à época tinha responsabilidades de governação local, foi um dos obreiros da democratização do transporte na aldeia.

Não era indiferente utilizar o termo autocarro ou camioneta. A palavra autocarro tinha algo

de urbano e de moderno, usada por gente perfumada, descontraída e decidida, de camisa com decote ousado. Pelo contrário, a camioneta era rural, associada a lenços na cabeça, xailes negros, pobreza, temor, perfumes de gosto duvidoso e parolice.

Tinham em comum o pica com o seu alicate e um horário a cumprir, que era diferente nas férias, com redução das viagens.

Quando adolescente e de férias na aldeia, havia que adaptar as idas à cidade aos horários ditados por regras que não entendia e que em nada serviam os utilizadores, muito menos coincidiam com as minhas vontades.

Ontem reencontrei a camioneta de carreira, na mesma paragem, enorme, transportando dois passageiros, e sem o revisor, porque agora o motorista acumula funções.

A urbanidade de algumas aldeias, o decréscimo demográfico, o transporte próprio, os horários, a busca de uma certa independência e a não subjugação, irão contribuir para o desaparecimento da camioneta de carreira. Na realidade, ela ainda perdura porque faz parte da intervenção social das autarquias, tendo-se tornado subsídio-dependente.

Mas este serviço social tem regras e, ao contrário de tempos idos, agora até tem uma carta de direitos dos passageiros com vários artigos. Quando comparo o presente com o passado, arrisco afirmar que nada mudou, porque continuo a verificar horários feitos à medida e com camionetas de dimensão inadequada, pouco amigas do ambiente, a ocuparem a largura de estradas municipais e a degradarem-lhe o frágil piso. Ao longo dos anos (que são muitos) pouco mudou ou, pelo contrário, a reivindicação das populações é agora inexistente, ou porque já não estão na aldeia ou porque simplesmente desistiram. No meu dia-a-dia vou ouvindo os queixumes quando marco a hora da consulta, ora porque é demasiado cedo, ora porque é demasiado tarde. Tenho que vir de manhã com a carreira da escola, alguma coisa se arranja por aí para comer e regresso à tarde com eles, diz-me a D. Lurdes, de baixa estatura, mas do alto dos seus 83 anos, e acrescenta, «o que me custa não é ficar por aí à espera, o que mais incomoda é que de cada vez que venho à Guarda os animais não saem do curral, mas o que me custa ainda mais é subir e descer os malditos degraus da carreira».

Algumas aldeias ficam tão perto mas tão distantes das sedes de concelho que se perde a vontade de lá viver. Será interessante questionar quem regressou às aldeias e aí construiu a sua casa, como vem diariamente para a Guarda trabalhar ou às compras ou tão só passear.

Hoje, em que tanto se fala da desertificação e abandono do mundo rural, se reúnem sapiências e todos os dias uns iluminados emitem pareceres da sua alta cátedra, há algo tão simples para resolver como a mobilidade dos cidadãos. Afinal. «o passageiro tem direito ao seu transporte e bagagem, de forma regular e contínua, pontual, segura, cómoda e em condições de higiene.

O sistema e a rede de transporte deverão ser adequados e flexíveis às necessidades de deslocação dos cidadãos, incluindo as situações que impliquem um alargamento e um reforço pontual da rede de transportes» – in Carta de direitos dos passageiros de transportes públicos.

Fui tentar perceber como está a rede de transportes de camioneta e de autocarro no meu concelho. Tentar levar a bicicleta da aldeia para o centro da cidade? Ter horários adequados ao meu trabalho? Ir de minha casa até alguns possíveis locais de trabalho? O meu turno termina às 24 horas, ainda tenho transporte? Quero levar o cão a passear ao recém-inaugurado Jardim José de Lemos, poderá viajar na camioneta ou no autocarro? Tenho umas galinhas para vender no mercado devidamente acondicionadas, conseguirei transportá-las?

Afinal todos pagamos este transporte, subsídio-dependente, mas pouco exigimos.

Por: João Santiago Correia

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