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A beleza das coisas frágeis

Opinião – Ovo de Colombo

Quando nos desviamos para um tempo remoto ficamos com a ligeira sensação de que estamos à beira de um precipício, pois há sempre um abismo entre aquilo que os nossos olhos vêem e aquilo que só podemos pressentir através de pequenas pistas. Essa sombra cresce ainda mais quando nos desviamos de uma cultura que nada tem a ver com a nossa. O Romance do Genji é tão diferente de tudo o que conheço que era como se estivesse a apreender um novo idioma. Murasaki Shikibu (o nome pelo qual a autora ficou conhecida após a sua morte) mostra-nos um universo onde a natureza se conjuga com o ser humano e aí vislumbramos uma poesia desperta e despojada. Mas para destaparmos o véu precisamos de um melhor entendimento sobre o Japão da Era Heian (entre 794 e 1185).

Neste enredo há um mundo de cascatas, e enquanto a natureza, com todos os seus tumultos, nos puxa para baixo, as personagens agitam-nos para cima. Num movimento ascendente de benefícios sociais, a vida aqui só entra em declínio a partir dos 37 (para as mulheres) e dos 40 (para os homens). Primeiro, surge o Imperador Kiritsubo com a Dama do Pavilhão das Paulównias, mas também primeiro está a Esposa Imperial e só depois a Dama do Pavilhão das Paulównias. Nessa época, as relações amorosas na corte eram regidas por um complexo sistema matrimonial, conhecido por kayoikon. Num primeiro momento, o homem teria, então, de obedecer a determinados compromissos para que não restassem dúvidas dos seus propósitos em relação à união com a pretendida. Depois do casamento, o homem possuía residência própria e frequentava a casa da mulher que tinha o dever de cuidar dos filhos. Nesta condição, a mulher passava a ser denominada como “Esposa Imperial” e o marido podia manter outras esposas secundárias e amantes. Logo no início do romance ficamos a saber que Kiritsubo, “embora não pertencesse às famílias mais distintas”, era a “Nova Favorita” do Imperador.

Como Kiritsubo morre sem adquirir o título de “Esposa Principal”, o seu filho (Hikaru Genji) nunca atinge o estatuto de Príncipe de Sangue e com isso a sucessão fica-lhe totalmente vedada. Porém devido à educação que proporcionará aos seus filhos, beneficiará de uma posição igualmente privilegiada. As notas editoriais que vamos encontrando pelo caminho servem como “confissões” para que nenhum detalhe nos passe ao lado. Durante essas notas, percebi que há uma vontade de aproximar o Romance do Genji ao Em Busca do Tempo Perdido. Gigantes na forma, ambos parecem dedicar-se aos veios profundos do amor e do ciúme. Mas também aí se sente o contraste Ocidente-Oriente. Pois se, por um lado, no Oriente o amor nasce dentro da própria religião, na cultura ocidental o amor é filho da filosofia e por isso surge à margem de qualquer dogma. Avistam-se, assim, duas chamas. Uma é vermelha e vem da sexualidade e do erotismo; a outra, mais trémula e carregada de azul, é a do amor. Por entre biombos, adufas e cortinas, esse sentimento chega às mulheres já como um carma. Aprisionadas nos seus palácios, o que essas damas nos diriam se ainda hoje estivessem vivas? Naquele tempo o amor era um destino imposto pelo passado e nunca se mostrava num rosto inteiro, mas também no nosso tempo continua a ser perigoso falá-lo.

Talvez, por isso, muitos vêm no Genji Monogatari a nascente de tudo o que se viria a desenvolver a seguir. Considerado o primeiro romance literário, este conto-rio é uma daquelas correntes que, uma vez estendidas, nunca mais poderão voltar ao seu estado original.

Melanie Alves

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com

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