Decorridos quarenta anos, ao fazermos uma análise, concluímos que 1969 foi um ano excepcional e fantástico.
Foi o ano em que fui admitido no Curso Geral dos Liceus, actualmente denominado de forma simplista como 7º ano. Preferia a primeira denominação, pomposa é certo, mas que nos fazia encher o peito. Estava a crescer, quer física quer mentalmente. A velocidade com que as bainhas tinham que ser descidas deixavam a minha mãe perturbada e a mim à beira de um ataque de nervos, porque os diversos vincos lá persistiam. Foi por esta altura o meu primeiro contacto com as calças e blusões da “Lois” e da “Levi’s”.
A TV a preto e branco demorava uma eternidade a ligar-se, dependendo do tempo que as válvulas demoravam a aquecer, primeiro aparecia o som meio constipado e depois imagem a surgir do nevoeiro. Mas em 1969 as notícias, quer portuguesas quer internacionais, foram extraordinárias, e eu assisti a tudo isso. Lembro-me do dia em que Neil Armstrong pisou a Lua, garantindo tratar-se de um “pequeno passo para o homem e um grande passo para a humanidade”. Quarenta anos volvidos, percebe-se que o grande passo para a humanidade dizia respeito a uma guerra-fria entre duas potências que disputavam a soberania do espaço. A sensação que ficou então foi que a URSS foi a derrotada. Em Agosto, o conservadorismo nacional, denunciado pelo fato, gravata e chapéu de Salazar, foi surpreendido pela força hippie num festival com muita paz, amor e fumos, denominado Woodstock, mas que afinal foi realizado em Bethel. Trinta e dois dos mais conhecidos músicos da época apresentaram-se durante três dias a meio milhão de espectadores. Nunca mais se conseguiu realizar evento igual. Beatles, Led Zeppelin e Door’s recusaram o convite por motivos diferentes, o primeiro porque a banda da Yoko Ono não estava no programa e o terceiro porque Jim Morrison estava em paranóia.
Em Outubro o Concorde, o primeiro avião supersónico, construído em Toulouse, faz o seu primeiro voo, mais uma vez do lado de lá da cortina estava o concorrente Tupolev Tu-144. A crise do petróleo e as questões ambientais fizeram com que se produzissem apenas 16 aviões dos mais de 100 então previstos. Uns anos mais tarde pude estar muito perto e a cores de dois destes aviões com um desenho extraordinário, autêntico hino à elegância, no mesmo aeroporto em que em 2000 acabaram por levar a machadada final, após o único e último acidente. Cada passageiro consumia uma tonelada de combustível para atravessar o Atlântico, mas a uma velocidade de 2170 Km/h e a uma altitude de 18 quilómetros.
Mas Portugal, apesar de tudo, também avançava pela mão de alguns que se destacavam, como é o caso de Linhares Furtado, meu mestre, que em Julho fazia o primeiro transplante renal. Depois desse nunca mais parou e no geral com muito sucesso, tendo sido, mais tarde, o responsável pelo primeiro transplante de fígado. Coimbra tinha já saído do marasmo e saltava para as primeiras páginas quando os estudantes aproveitaram a inauguração do edifício das matemáticas para criarem uma crise grave, muito mal resolvida pelos governantes. A Associação Académica decretou o luto e a greve às aulas e exames, as escadas monumentais foram ocupadas por guardas-republicanos a cavalo e muito alvoroço. Foi a nossa crise académica, tal como Paris tivera a sua em 68. Nessa luta estiveram envolvidas algumas figuras públicas do Portugal actual.
Lembro-me vagamente de ser acordado pela minha mãe e, além do meu tremor, sentia que a casa, a cama e os móveis tremiam, na rua ouviam-se gritos, na sala caíam os pratos que estavam expostos no aparador (eu sabia que aqueles suportes eram frágeis), havia um barulho de fundo muito estranho e assustador. Descemos as escadas do prédio e juntamo-nos aos que já estavam na estrada de chinelos e pijama. Repetiram-se algumas réplicas de menor intensidade. Uns dias depois, a professora de Português obrigou-nos a escrever uma composição. Masoquista a senhora. Ainda tenho esse caderno guardado. Casei-me dez anos depois. Dez anos antes, em Outubro registara-se a primeira emissão da RTP a nível nacional com um telejornal cuja notícia de primeira página foi o Dr. Salazar a votar nas autárquicas. Cinquenta anos depois também eu tive as minhas autárquicas.
Foi assim o meu 1969, em comparação o 2009 foi banal.
Jor João Santiago Correia