A gabarolice tem um karma lixado. Depois de na semana passada ter vindo para estas páginas armar-me aos cucos com umas palavras em lituano, a realidade passou-me uma rasteira. «Já que tens a mania que sabes dizer “o rei da espuma”, então agora preenche lá esta declaração de residência com instruções em lituano», disse-me a realidade. Ou melhor, disse-me a senhora do serviço de emigração, que tinha um apelido com mais de seis sílabas, o que me parece um abuso.
Além dessa declaração com instruções como “Ankstesnės gyvenamosios vietos adresas” ou “Patalpos naudingas plotas”, foi necessário anexar o contrato de arrendamento – também em lituano. Pedi ao senhorio que preenchesse a declaração por mim, e que redigisse o contrato na língua nativa, que eu assinei e enviei para os serviços municipais da cidade de Vilnius.
Um condutor da Bolt – aqui, mais popular do que a Uber – dissera-me precisamente na viagem para os serviços de emigração que era totalmente inútil aprender lituano, que não servia para nada, porque toda a gente sabe falar inglês. É verdade que muita gente sabe, mas para meu azar, nem quem fez a declaração de residência nem a cabeleireira onde fui cortar o cabelo fazem parte dessa imensa maioria.
Por isso, pode muito bem ter acontecido que eu tenha declarado oficialmente um contrato de arrendamento para os próximos 30 anos, ou posso até ter assinado um compromisso de tomar conta dos filhos do senhorio todas as sextas-feiras à noite, ou de lhe lavar o carro e cortar a relva do jardim sempre que lhe apeteça. Como se isso não bastasse, tenho um corte de cabelo com franja à soviético e instruções rigorosas e muito peremptórias, dadas por uma senhora com mais pinta de agente do KGB do que de cabeleireira, para não o pentear para cima, como faço há 30 anos. Eu bem sei que a URSS foi dissolvida faz este ano três décadas, mas à cautela, ando sempre de gorro.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
Nuno Amaral Jerónimo está em Vilnius a convite da Vilnius Tech University