Frimário

«Precisamos de orientação na desordem estuporada do mundo»

1. A construção do elevador panorâmico e miradouro na Torre dos Ferreiros, cuja inauguração ocorreu no passado dia 27, veio revelar duas posições bem definidas: grosso modo, os que gostam e os que não gostam. Um resultado que não é original neste tipo de situações, em que está em causa um património que todos sentem, e bem, como seu. Porém, o que realmente interessa é fazer a radiografia dos que se colocam de cada lado da barricada. Qual o denominador comum que os agrega e separa. Tenho acompanhado o que se diz e escreve nas redes sociais sobre este e outros assuntos análogos. E dei conta de algumas constantes que ajudam a explicar certas escolhas. Quem está, por regra, contra tudo o que mexe? Os “no meu tempo é que era bom”; os que desarvoraram da cidade há muito tempo, mas querem que ela continue como a deixaram para a poderem visitar duas vezes por ano como se fosse um álbum de recordações; os que só vêem política partidária à frente e por isso estão sistematicamente contra o que os “outros” fazem, só porque sim; os que acham o desmazelo bonito, porque é “antigo”; os que vão buscar argumentos conservacionistas colados com cuspo para justificar os sinos a rebate com que alertam a populaça para um “atentado” e uma “vergonha”. Estes últimos, eminências cívicas, estetas, ou agentes de “causas”, são aqueles que maior perplexidade suscitam. Não buscam esclarecimento, mas propaganda. Não pretendem informar, mas persuadir. Não usam a razão, mas o preconceito. Ignoram experiências semelhantes noutros locais. Confundem conservação com imobilismo. Um exemplo. Alguns críticos apontam os custos da obra, orçada em 700 mil euros. E que o dinheiro poderia ser gasto na reabilitação do centro histórico. Quanto aos gastos, esquecem que 85% foram comparticipados pelo FEDER. Por outro lado, tais críticas revelam uma visão curta do que é dinamizar núcleos históricos das cidades. Hoje em dia prevalece a ideia de que a valorização desses conjuntos deve passar por vários estádios. Primeiro, levam-se a cabo vários projectos-piloto que atraiam visitantes, divulguem a cidade e funcionem como âncoras mediáticas. Numa segunda fase, trabalha-se o pormenor. Sendo então mais fácil captar fundos e investidores. Do outro lado, é certo que existe o reverso da moeda. Mas há tendencialmente maior abertura, mais estudo, uma malha crítica mais fina, uma predisposição para a mudança e o risco. E chegamos ao mais importante: a linha subtil que separa os dois campos, alheia a posicionamentos políticos, ideológicos e até mesmo partidários. Para a encontrarmos, teremos que unir outras variáveis: a educação, as referências culturais, os hábitos de vida, o estilo. Ou seja, há conservadoristas que são conservadores e outros que o não são. Há tradicionalistas por casmurrice colhidos à esquerda e à direita. Há “progressistas” que gostam de tudo como está, excepto se forem progressistas certificados a mudar. Mas há quem simplesmente valorize o progresso, seja quem for que o traga. Há os que confundem exigência com obstáculo. Mas também os que, sem abdicar da exigência, não têm medo de inovar.

2. Vivemos amarrados à necessidade de superlativizar. Compararmos realidades e elegermos as que são próximas. Para assim amparar a nossa primordial insegurança: “o meu filho é o mailindo do universo!”, “o rio X ou y é o mais bonito do mundo!”, “o queijo da serra de alguidares de baixo é o melhor de toda a beira serra!”, “as dez melhores cidades para viver!” (e para morrer, também há?), “os cinco melhores restaurantes da Península Ibérica!”, “as dozes melhores escapadinhas românticas!”, “a melhor açorda de todo o Alentejo!”, “as vinte melhores praias de Portugal!”, etc, etc… Precisamos de orientação na desordem estuporada do mundo. Uma escada. Um bordão. Não saboreamos as coisas. Uma de cada vez. Com vagar. Como se fossem únicas. Não! Preferimos instalá-las, em pânico, numa caixa. A caixa onde nos fechámos há muito, sem remissão.

3. Fidel Castro morreu há quatro anos. Quando morre um tirano, tenha ele a cor que tiver, mais importante do que a elegia ou o festejo é a recordação das suas vítimas. Todas. No caso de Fidel, eis algumas das mais ilustres, fossem exilados, presos, perseguidos, torturados ou assassinados: Cabrera Infante, Herbert Padilla, Reinaldo Arenas, Luis Lezama Lima, Virgilio Pinera, José Kozer, Yoani Sanchéz (jornalista e autora do blogue “Geração Y”, censurado pelo Governo, actualmente em prisão domiciliária), Rolando Reyes Rabanal, Mario Alberto Hernández Leiva, Miguel Ángel Tamayo Frías, Vladimir Ortiz Suárez, Marcelino Abreu Bonora, Ángel Moya, Antonio González Rodiles, Reinaldo Escobar, Díaz Silva, María Borrego Guzmán, Mejías Zulueta.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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