Brumário

«A saúde, ao contrário dos EUA, é uma questão colectiva e a doença não serve para depreciações morais dos indivíduos.»

1. Ao que parece, Trump foi infectado pelo SARS-COV-2. De imediato, o seu opositor Biden anunciou publicamente que o seu teste deu negativo. Esta competição virtuosa tem uma explicação. Nos países anglo-saxónicos, a saúde é um tema em que a responsabilidade individual é determinante. A doença – ou certo tipo de maleitas – é uma espécie de punição pelo desvio à moralidade dominante. Longe vão os tempos em que a sensibilidade romântica separou as doenças “limpas” e impuras. Onde as primeiras, maxime a tuberculose, dotavam o paciente de uma aura de prestigio. No fundo, eram como que um corolário da personalidade. A exaltação última de uma espécie de santidade sacrificial. Hoje não. Os estilos de vida determinam o recrutamento ou manutenção de postos de trabalho, ou a elegibilidade para determinados tipos de seguro. O tratamento de determinadas doenças infecto-contagiosas e cancros do pulmão é posto em causa por determinados sectores de opinião, uma vez que tem origem em comportamentos de risco. Compreende-se pois que o episódio se tenha tornado tema de campanha. E por cá? A saúde, ao contrário dos EUA, é uma questão colectiva e a doença não serve para depreciações morais dos indivíduos. Um político infectado nunca seria tema dominante numa campanha eleitoral. E os seus índices de popularidade até poderiam subir.

2. À terceira tentativa, Ventura formatou o partido à sua imagem. Muita gente não leva o Chega a sério. Por menosprezo, arrogância, preconceito, temor, ou pior ainda, paternalismo. Eu sempre olhei para o Chega como um adulto, não como um adolescente irresponsável e perigoso. Mesmo quando faça ou diga disparates. Corporiza uma corrente de opinião. Mas isso não significa que concorde com ela. Ora, só podemos discordar do que olhamos em pé de igualdade. Essa é uma lição que recolhi não de agora, mas dos clássicos e dos humanistas de seiscentos. Voltemos ao Chega. Subscrevo a tese de André Abrantes Amaral, segundo a qual Ventura quer tornar tão fácil ser de direita como tem sido fácil ser de esquerda desde o 25 de Abril. O problema é que não é. Não subscrevo o estilo ou o ideário de Ventura, mas reconheço-lhe uma virtude essencial: está a forçar uma recomposição do xadrez político nacional. Ou seja, está a engrossar uma corrente de protesto transversal, que funciona como contraponto ao protesto tradicional dos comunistas e neo-comunistas. Que com o correr do tempo se tornaram agentes do imobilismo.

3. Os motéis. Crescem em estradas movimentadas, em áreas periurbanas, entre grandes centros populacionais. Para marcar, pode-se tratar tudo online. Chega-se, com discrição total. Passa-se o cartão da reserva com o código de barras pelo leitor. Depois entra-se com o carro para uma garagem. Que dá acesso directo ao quarto. Quem entra nunca se cruza com quem sai. Anonimato perfeito. O quarto pode ter extras. Cama giratória, com espelho por cima. Jacuzzi. Champanhe. Ideal para as facadinhas clássicas: patrão/chefe e secretária, professor/a e aluna/o, mulher enfastiada do casamento e monitor do ginásio. Mas há lugar também para mulheres e homens enfastiados do casamento com mulheres e/ou homens enfastiado do casamento, mulheres que querem voltar à adolescência com outras mulheres que querem voltar à adolescência. Confusos? Neste caso, também como preliminar socialmente aceitável do cliché “mulheres enfastiadas do casamento com monitores do ginásio bem providos”, embora elas, pobres sonhadoras, imaginando que são vates tangendo a lira. Todo um programa virtuoso e relativamente acessível. A última linha de defesa do castelo do decoro. Mesmo que por portas travessas. Vamos meninas, não se façam rogadas!…

4. Poucos sabem que a oratória foi um género cultivado nos séculos XVII e XVIII. Com as suas regras formais, a predilecção sobre temas religiosos, morais ou de etiqueta. Apesar do curso da história e das transformações culturais profundas, há vícios na comunicação pública que sobrevivem: a necessidade de mostrar eloquência, a praga do elogio mútuo, o ódio à síntese, o narcisismo, a necessidade do encómio untuoso, a falta de auto-crítica, etc. Falta adrenalina, contraditório, escrutínio mútuo, rigor. A minha tolerância para assistir a sessões públicas deste tipo está próxima do zero.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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