Se a situação pandémica não se agravar mais do que o previsto, a próxima cimeira ibérica deverá celebrar-se na Guarda dentro de 15 dias. Para os que esperavam uma cidade engalanada e em ambiente de festa para receber mais um momento alto do iberismo, desenganem-se, o Covid não permite grandes festas ou sequer intimidades fugazes.
A Guarda de Eduardo Lourenço é por excelência um porto de abrigo para o iberismo tantas vezes defendido pelo nosso maior pensador, ele próprio um caminhante pelos horizontes castelhanos muito para além da Raia e das pedras e dos carreiros de São Pedro do Rio Seco. Em todo este território inóspito e ostracizado, dos dois lados de uma linha imaginária, outrora palco de batalhas e guerras, hoje à procura de um novo rumo, a promoção de uma estratégia comum pode continuar a ser uma pequena utopia adiada, que devemos abraçar. Como do lado de cá da Raia, em que sofremos as assimetrias de uma interioridade incompreensível carregada de envelhecimento e despovoamento, em que muitos ainda acreditam ser possível recuperar o irrecuperável; do lado de lá, a Espanha “vaciada” tem nas fronteiriças províncias de Zamora e Salamanca dois dos focos mais deprimidos dessa disparidade castelhana. Mas se Espanha soube desistir há dezenas de anos dos territórios mais recônditos (com uma concordata em que as ovelhas seguiram os seus pastores para os arciprestados) “salvando” alguma ruralidade e, mesmo com uma baixa taxa demográfica, conseguindo manter alguma vida e população nos “pueblos” maiores. Ou, como um dia escreveu Ana Abrunhosa, teremos de deixar alguns para trás para podermos salvar a maioria, mais do que gerir o declínio, devemos assumir que «há partes do território onde não vai ser possível recuperar população e atividade económica» – ainda que alguns demagogos teimem no discurso populista de que quem vive isolado tem os mesmo direitos que quem vive em meios menos abandonados e deve receber tudo e mais alguma coisa para continuar a viver no seu lugar: Não, não tem, porque cada cêntimo que se gasta para além do eminentemente indispensável (água potável, iluminação pública e acesso digno) será menos um cêntimo para poder investir nos meios menos isolados e que ainda têm um resquício de esperança no futuro. E enquanto não percebermos que levar artificialmente vida a sítios que há muito foram abandonados, ainda que todos mereçam viver com dignidade, é gastar recursos que não temos, é desperdiçar meios que fazem falta para desenvolver e promover as aldeias, vilas e cidades onde ainda podemos construir o futuro. É escolher entre ver os filhos partir ou tê-los por perto, é escolher entre a diáspora ou a aldeia ao lado, é saber «gerir o declínio», mesmo nos tempos da economia digital…
Os Governos de Portugal e Espanha deverão aprovar na Guarda, a 2 de outubro, uma estratégia comum de desenvolvimento transfronteiriço assente em cinco eixos. A mobilidade transfronteiriça, a melhoria das infraestruturas e da conetividade territorial (o nascimento da eurocidade “Portas da Europa” em Vilar Formoso, Fuentes de Oñoro, Almeida e Ciudad Rodrigo poderá ser um expoente); a coordenação dos serviços básicos; o desenvolvimento económico e inovação; o ambiente e energia; e cultura (em que a Capital Europeia da Cultura na Guarda poderá ser o outro expoente). Esta será a segunda vez que a Guarda irá acolher uma cimeira Ibérica. A 12 de fevereiro de 1976 foi aqui inaugurada a reaproximação a todos os níveis entre os dois países vizinhos, com resultados tão extraordinários que ficou conhecida como a cimeira do “espírito da Guarda”. 44 anos depois, os focos serão outros, mas determinantes para o interior: desencravar a Raia, contrariar o despovoamento e lançar raízes para uma nova economia sustentável transfronteiriça.