Sociedade

O comboio judeu que ficou 10 dias parado em Vilar Formoso

Escrito por Sofia Craveiro

Em novembro de 1940 um comboio chegava a Vilar Formoso lotado de esperança judia. Dificuldades diplomáticas impediram os cerca de 300 expatriados pela guerra nazi de entrar em Portugal, forçando-os a ficar dez dias dentro do comboio parado.
No fim de tudo foram obrigados a voltar para trás e muitos deles não sobreviveram para contar a história, que é agora evocada no museu da vila fronteiriça.

Era o terceiro comboio com origem no Luxemburgo que rumava a Portugal no ano de 1940. Expulsos do país, os 300 passageiros, que incluiam refugiados apátridas, alemães e luxemburgueses, vinham acompanhados de agentes da Gestapo. A obra “Comboio do Luxemburgo – Os refugiados judeus que Portugal não salvou em 1940”, da autoria de Irene Flunser Pimentel e Margarida Ramalho, conta a história dos judeus expatriados que ficaram retidos neste comboio ao chegar a Vilar Formoso.

O “terceiro transporte” – como ficou conhecido – partiu de Espanha em novembro, após os judeus terem atravessado a França de autocarro. De acordo com a referida obra, à chegada a Vilar Formoso confrontos armados entre as autoridades portuguesas e a Gestapo levaram a que a saída dos passageiros não fosse permitida, deixando-os à mercê da fome, frio e cansaço durante dez dias antes de serem reenviados para França. «Não tinham sequer autorização para ir aos sanitários. Por essa razão, os dejectos tinham de ser deitados pela janela e todos os dias o comboio era manobrado para se poder limpar a linha», lê-se no livro. De acordo com Margarida Ramalho, investigadora e co-autora desta obra editada pela Esfera dos Livros, «os refugiados só puderam sair um pouco, para se limpar e caminhar, ao oitavo dia, quando chega o diretor da PVDE [antessora da PIDE] que autoriza essa saída». Dois dias depois acabaria por chegar de Lisboa uma ordem de regresso que impedia os refugiados de ficar em Portugal. «As pessoas tentaram chegar posteriormente à França livre. Muitas conseguiram vistos para partir para outros países, outros esconderam-se, mas cinquenta acabaram em campos de extermínio», conta a investigadora.

Margarida Ramalho salienta que este episódio foi, apesar de tudo, uma excepção à regra em Portugal. «Havia uma legislação muito restritiva à entrada de refugiados, mas acabou por ser autorizada a entrada a quase todas as pessoas que chegavam à fronteira durante a guerra», mesmo aos que chegavam de forma ilegal. Deste episódio a co-autora – que é também curadora do museu de Vilar Formoso – destaca a atitude da população local que levou comida e bebida aos judeus retidos no comboio. «Mesmo sendo pessoas sem grandes posses, foram capazes de ser acolhedoras a quem estava em sofrimento».

Museu “Fronteira da Paz” perpetua a memória do holocausto

Apesar da boa vontade dos locais, uma mulher acabou por sucumbir e morreu no período em que o comboio esteve retido em Vilar Formoso. Foi sepultada na vila fronteiriça e é uma entre as muitas vítimas homenageadas no pólo museológico “Vilar Formoso Fronteira da Paz – Memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes”. Inaugurado a 26 de agosto de 2017, este museu é um espaço onde são homenageadas não só as vítimas do Holocausto que passaram por Portugal, como a figura heróica de Aristides de Sousa Mendes. O cônsul português em Bordéus, contrariando as ordens de Salazar, assinou milhares de vistos que permitiram aos judeus em fuga a entrada em Portugal.

A localização e configuração das salas expositivas foi pensada de forma a transmitir ao visitante sensações evocativas da jornada dos refugiados. Luísa Pacheco Marques, arquiteta responsável pelo projeto, explica que para materializar a história «tinha que se construir uma narrativa e ligar os dois edifícios», referindo-se aos dois antigos armazéns da CP já existentes junto à estação de comboios. «Este foi o local onde tudo aquilo se passou aquando da chegada a Vilar Formoso, em 1940», sublinha.

A forma das estruturas do museu vai-se adaptando ao conteúdo, transmitindo o agravar da situação dos judeus.

Ao longo dos seis núcleos expositivos – “Gente como nós”, “Início do pesadelo”, “A viagem”, “Vilar Formoso fronteira da paz”, “Por terras de Portugal” e “A partida” – vai sendo relatada a jornada dramática dos judeus através das paredes, que «vão contando a narrativa do que acontece a nível de factos históricos mais relevantes entre 1933 e 1940», adianta Luísa Pacheco Marques. A forma das estruturas vai-se adaptando ao conteúdo, transmitindo o agravar da situação. Um exemplo é o núcleo dedicado ao “Início do pesadelo”, um espaço construído num «ponto de fuga, onde o pavimento sobe, o teto desce e as paredes afunilam», formando um túnel sombrio que transmite a ideia de «opressão e de estrangulamento», explica a arquiteta.

16.700 pessoas já visitaram o espaço

António Machado, presidente da autarquia de Almeida – entidade que promoveu o pólo museológico – afirma que espaço já recebeu «cerca de 16.700 visitantes desde a abertura e o número tem vindo a aumentar de ano para ano». 

Na lista de visitantes destacam-se escolas e famílias, grupo onde se incluem passageiros e descendentes daqueles que viajaram no comboio. «Todas as pessoas cujo paradeiro consegui encontrar já visitaram Vilar Formoso», revela Margarida Ramalho, segundo a qual existe «uma carga emocional brutal» por parte dos judeus que aqui se deslocam e reconhecem os azulejos da gare.

75 anos após a libertação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau – assinalados no passado dia 26 de janeiro – Vilar Formoso continua a ser um importante local de homenagem, que fica na história como “Fronteira da Paz” e ponto de passagem rumo à liberdade.

Sofia Craveiro

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