O Centro Social e Paroquial de Vila Franca das Naves e a Misericórdia de Trancoso disputam em tribunal a herança milionária de Carmen Augusta Rios Domingues, falecida a 17 de maio de 2016 sem herdeiros, cuja fortuna continua por determinar. O julgamento começou na quinta e sexta-feira no Tribunal da Guarda com o depoimento da demandada e das testemunhas das autoras do processo, a IPSS vilafranquense e uma amiga da falecida, Maria Helena Beirão. Nova sessão está agendada para 11 de dezembro para serem ouvidas as nove testemunhas da Santa Casa.
Na primeira sessão ficou a saber-se que estão registados na herança 49 prédios urbanos e rústicos em Lisboa, Estoril, Figueira da Foz, Viseu e zona de Vila Franca das Naves, bem como depósitos bancários, ações e aplicações financeiras num montante que ultrapassará as centenas de milhares de euros. Só o valor patrimonial da testadora registado nas Finanças é de pouco mais de 1,2 milhões de euros, mas não deverá corresponder ao valor real tendo o tribunal mandado fazer uma avaliação desses bens por peritos independentes. De resto, Mário Gonçalves, engenheiro civil ouvido na segunda sessão, disse ter avaliado a quinta de Viseu em cerca de 13 milhões de euros. O certo é que a fortuna está a gerar muito interesse e curiosidade popular, tendo a principal sala de audiências do tribunal ficado praticamente lotada.
O provedor da Misericórdia foi o primeiro a ser ouvido e declarou que o Centro Social e Paroquial de Vila Franca das Naves não aceitou que a Santa Casa fosse herdeira e comunicou-o «desde logo», após a publicação, a 14 de junho de 2018, n’O INTERIOR de um anúncio sobre atribuição de legado. «Reivindicaram para eles essa herança, até de forma agressiva, ameaçando movimentar as populações e divulgando o caso», sublinhou o padre Joaquim Duarte. O responsável também confirmou que a Misericórdia «não era herdeira, mas poderia habilitar-se à herança» e acrescentou que a testadora não instituiu a IPSS de Trancoso como herdeira «nem mais ninguém». O provedor negou ainda que a Misericórdia tenha tentado vender a quinta de Viseu.
A segunda testemunha foi Maria Helena Beirão, amiga de infância de Carmen Domingues, que a incluiu no testamento para «surpresa» sua. A também coautora do processo falou em «enorme fortuna» da testadora, que era uma pessoa «muito poupada e que investiu no imobiliário». Quanto à vontade de legar esse património às comunidades de Vila Franca das Naves e aldeias vizinhas, Maria Helena Beirão justificou ter sido «um ato de gratidão por quem ia comprar à loja do pai, em Vila Franca, e o ajudou a fazer fortuna». A amiga da testadora explicou depois porque decidiu agir: «Fiquei indignada porque comecei a ver que o que estava no testamento não estava a ser cumprido porque a Carmen nunca me falou na Misericórdia. Ela sempre falou nas crianças e nos velhos de Vila Franca das Naves, que a terra precisava de uma organização que as ajudasse», declarou, assumindo desconhecer porque é que a testadora não fez isso em vida.
Fortuna legada para prestar assistência «à velhice e à infância»
O caso diz respeito ao cumprimento da última vontade de Carmen Domingues, única herdeira de um comerciante galego radicado em Vila Franca das Naves.
Solteira e sem familiares conhecidos, a falecida legou o grosso do seu património à população de Vila Franca das Naves através de uma comissão assistencial extinta ou, «na sua falta, à entidade congénere existente naquele concelho e que tenha a seu cargo a organização de assistência, com a obrigação de destinar toda a sua herança a uma instituição de assistência particular, com sede em Vila Franca das Naves, do mesmo concelho, que terá a denominação de “Instituição de Assistência Rios Domingues”», lê-se no testamento lavrado em Coimbra, a 16 de abri de 1965, a que O INTERIOR teve acesso.
Segundo o mesmo documento, a herança deverá estender «obrigatoriamente a sua ação às povoações de Vila Franca das Naves, Cerejo, Moimentinha, Póvoa do Concelho e Vilares», as localidades de onde eram originárias as pessoas que trabalharam para os pais da benemérita – Germano Vicente Domingues e Delmina Rios Domingues – e «interessar-se, sobretudo, pela assistência à velhice e à infância». O problema é que a Comissão Municipal de Assistência de Trancoso foi extinta em 1971 e os seus ativos foram destinados à Misericórdia, que se habilitou como herdeira do património legado em 2018.