Reis, bispos e peões

Escrito por Fidélia Pissarra

O sucesso da imprensa cor-de-rosa, mais do que mostrar a necessidade que temos de darmos um rosto à felicidade, evidencia a forma como esse rosto pode ser manipulado contra nós. Isto porque não ocorreria a ninguém pensar que quem tão ocupado anda com indumentárias e experiências extra seja capaz de ser infeliz, ignorante ou malvado. Bem, infeliz e ignorante, ainda vá que não vá, agora malvado é que nunca. Aquelas caras sorridentes, aqueles cabelos a combinar na perfeição com os sapatos sem esquecer os dentes imaculados, nunca poderiam pertencer a gente má. A ideia de reduzir a vida àqueles vestidos de gala permanente, com uns romances em fundo, será unir os restantes mortais em torno deles mesmo e neutralizar quaisquer tresmalhos ideológicos. Se a isso juntarmos um sistema de ensino incapaz de disseminar conhecimento e capacidade crítica, facilmente compreenderemos alguma das vicissitudes deste mundo. Pelo menos não estranharemos tanto que os que mais vivem à custa de subsídios europeus sejam também, e em simultâneo, os antieuropeus mais convictos nas ruas do Reino Unido. Provavelmente por, de tão distraídos com coroas, batizados e reais lancheiras escolares, terem ficado sem tempo para pensar na própria sorte e no destino para que se deixaram empurrar. Compreenderemos, igualmente, que nos reais destinos aqui ao lado se não prevejam referendos, ou outros “endos” que tais, mesmo que sejam só para “inglês ver”. Primeiro porque quem tradicionalmente gosta de mostrar coisas aos ingleses somos nós. Segundo porque a maioria dos catalães é bem capaz de escolher independentizar-se e lá ficava o reino amputado e até a “Hola” se arrojaria numa greve (coisa muito pouco apropriada para uma publicação com aquela craveira).
Dentro da nossa velhíssima fronteira ninguém pensa em saídas ou independências e não há cá necessidade de príncipes e princesas com pretensões a unir-nos em torno de uma coroa e de um cetro. À falta deles, a imprensa cor-de-rosa inventou uns figurões que, embora lhe escureçam um pouco o tom, sempre lhe vai garantindo adeptos em número nada desprezível. Compreenderemos, assim também, que embora por cá não haja quem refile para sair ou permanecer, mesmo sem andar entretido com sapatos de rainha abunde quem não queira saber de nada no que à sua sorte diz respeito. Ao ponto de um clérigo católico ter de se pronunciar contra esta peculiaridade do povo português ser tão crente que prefere deixar o seu destino em mãos divinas. O que, por paradoxal que pareça, não terá caído lá muito bem ao bom do clérigo que, dissecando políticos incompetentes e políticas ineficazes, elaborou logo ali a sua teoria da abstenção, responsabilizando os políticos enquanto alertava para fenómenos populistas. O que já ninguém será capaz de compreender é o não se lhe conhecer, pelo menos tão bem, uma outra análise a concluir que os responsáveis pela proliferação de igrejas evangélicas e missas cada vez menos concorridas sejam os padres. Isto, com tanta leveza de análise, um destes dias ainda alguém vem clamar que os responsáveis pela desertificação das nossas terras são os autarcas.

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Fidélia Pissarra

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