Não é difícil encontrar amigos e admiradores sinceros de todos os que foram ou são presidentes da Câmara Municipal da Guarda, pelo menos dos que o foram em democracia. A todos a cidade deve alguma coisa, mesmo que com mais ou menos razões de queixa em relação a outras. É verdade que, como eleitorado, somos pouco exigentes. Num concelho pobre e envelhecido do interior, de onde fogem os jovens e onde morrem cada vez mais velhos, pouco se tem feito para inverter a tendência para a entropia. Mas gostamos de festas, de flores nas rotundas, de obras de fachada. É como se o presidente da Câmara de Berlim, em 1946, tivesse como prioridade assinalar faustosamente o solstício de verão e os berlinenses aplaudissem. Entretanto, ao longo dos últimos quarenta e tal anos deixámos fugir uma universidade para a Covilhã, que recebeu também o Data Center da então PT, com o argumento insultuoso, para nós, de ser “necessário ficar num sítio onde esteja frio”, vimos Viseu e Castelo Branco ganharem-nos em importância, em qualidade de vida. Continuamos sem um parque industrial onde as grandes empresas queiram estar, não conseguimos atrair investimento, empregos, ou dar um futuro, aqui, aos nossos poucos jovens. Nem sequer temos um clube de futebol na IIª liga, ou até na terceira divisão.
Mas tivemos dois presidentes de Câmara a braços com a justiça. Ambos eleitos com maiorias absolutas, em vitórias inequívocas. Isto já é mais castigo do que má sorte, e os castigados somos nós.
Neste último caso, o da operação que a Polícia Judiciária chamou de “Rota Final”, está em causa a atribuição à Transdev, por adjudicação direta, dos transportes públicos no concelho da Guarda. A adjudicação direta, esclareça-se, é uma forma de evitar as maçadas e demoras do concurso público, que por vezes demora muito tempo a ficar decidido, com reclamações e impugnações, e acaba muitas vezes em tribunal. Mesmo assim, o concurso público deveria ser a regra por uma questão de transparência e igualdade de oportunidades entre as empresas do mesmo ramo. No nosso país, em que o Estado gasta cerca de metade da riqueza produzida e em que a má gestão dos dinheiros públicos é uma das fontes dos nossos problemas, é fundamental a justiça na contratação das empresas privadas, a preservação do interesse público nessas contratações e a proteção das boas regras da livre concorrência. É por isso que os ajustes diretos são uma praga a exterminar: podem ficar mais caros do que em concursos abertos à concorrência, já que o preço do adjudicatário não sofrerá contraditório e são especialmente propícios à corrupção.
Do caso ainda pouco se sabe, mas o que se sabe tem detalhes desagradáveis e inquietantes: a caução fixada, de 40.000 euros, parece excessiva para uma simples opção ilícita pelo ajuste direto em detrimento do concurso, o que indicia a particular gravidade das circunstâncias; a relevância penal do caso dependerá, para tanto aparato, da verificação do prejuízo público na contratação; ao serem deixados de fora os restantes elementos do executivo camarário, sugere-se que tudo passou apenas por Álvaro Amaro, ou que as provas apontam apenas para ele. Isto indicia prova pesada, baseada em escutas telefónicas. Há a habitual presunção de inocência, mas também a presunção de que magistrados e polícia sabem o que estão a fazer.
Segredo de justiça ou não, chegou o momento de a Câmara Municipal da Guarda, que contratou a Transdev em condições pouco claras, esclarecer publicamente as condições e razões da contratação, assim como as razões pela opção pelo ajuste direto daquela específica empresa.