35 horas

Depois de muitos dias a ouvir as queixas dos médicos, de quase diariamente vermos o Bastonário da Ordem dos Médicos como se fosse um dirigente sindical, e depois de termos ouvido durante semanas os sindicatos médicos a repetirem ad nauseam que o Serviço Nacional de Saúde está muito mal e não se recomenda, aí está a greve dos médicos (e também dos enfermeiros) para passar a certidão de óbito ao SNS. O Governo diz o contrário: que o SNS está bem e recomenda-se. E, enquanto a greve decorria, foi divulgado um “estudo” que apresenta a excelência clínica na gestão por parcerias-publico-privadas (fazendo esquecer que o hospital de Vila Franca de Xira, eleito como o de maior excelência clínica, é gerido por uma PPP que instalava doentes nos refeitórios e nas casas-de-banho maximizando a capacidade instalada). A Saúde é de facto uma indústria. Uma indústria de milhões! E todos querem meter a mão no pote… De tal forma que tudo parece orquestrado para fazer implodir o SNS!
Portugal tem mais de três médicos por mil habitantes (3,3), mais do que a média da OCDE (3,2) e tantos como a Holanda ou a França (3,3). Quase tantos como a Espanha (3,8) ou a Suécia (4 médicos por mil habitantes) – a Inglaterra tinha menos do que a média da OCDE, por isso em 2018 aumentou em 60% as vagas para as faculdades de medicina e, entretanto, importa médicos de diferentes latitudes, nomeadamente de Portugal. Porém, entre nós, a “falta” de médicos onde eles são necessários é um problema insolúvel no atual quadro, e para isso muito tem contribuído a própria Ordem dos Médicos que, corporativamente, defende o status quo que politicamente ataca. Assim, e porque é urgente responder às necessidades da população, é necessário aumentar a formação de médicos e autorizar o curso de Medicina em universidades privadas que tenham capacidade cientifica e técnica para isso – a agência de acreditação do ensino superior, a A3ES, continua a recusar dar o aval ao hospital universitário da Universidade Fernando Pessoa, à Católica de Lisboa ou ao grupo Luz Saúde (em média, um médico demora 6,6 anos a terminar o mestrado integrado, acresce a este a duração do internato de especialidade, que varia entre quatro e seis anos, conforme a especialidade escolhida, ou seja, dez anos de formação, pelo que medidas tomadas hoje só terão efeito no sistema de saúde daqui a muitos anos); é preciso alterar a forma de acesso à especialização das diferentes valências; a capacidade de produzir cuidados de saúde não depende apenas do número de médicos disponível, mas também da forma como estão organizados (e esta é a parte em que os profissionais têm mais razões de protesto); é urgente exigir compromissos de trabalho aos licenciados em Medicina, pois são cursos demasiadamente caros para depois o país não exigir ser recompensado); e é necessário recuperar o investimento público na saúde, nomeadamente com a progressão na carreira e a contratação de técnicos que de outra forma irão para o sector privado que absorve os recursos e os milhões do SNS (na Guarda, por exemplo, podemos fazer uma Ressonância Magnética mais rapidamente do que em qualquer hospital central, mas só uma vez por semana, que é quando há pessoal disponível, nomeadamente um médico que vem de Viseu à terça-feira. Os demais dias, se houver necessidade urgente desse diagnóstico contrata-se o serviço ao privado a que o SNS terá de pagar muito dinheiro – não porque não haja capacidade instalada, mas porque há falta de recursos humanos qualificados para o fazerem. E, já agora, porque as regras públicas exigem que o imagiologista faça a leitura da RM presencialmente, enquanto no privado é feita online, por exemplo num hospital no Porto). Para minimizar os problemas da falta de médicos de família também podemos contratar os médicos cubanos que Bolsonaro expulsou do Brasil (mas a Ordem não deixa…).
E depois há o problema das 35 horas que veio “rebentar” com as escalas de todos os serviços. Uma medida populista, de redução de 20 horas de trabalho por mês, sem redução de vencimento, tomada no seguimento da afirmação da “geringonça”, que não foi devidamente estudada e não se mediram as consequências. Foram contratados mais 2.850 profissionais para suprir a redução das 40 para as 35 horas, mas o funcionamento dos serviços foi prejudicado e aumentou-se a despesa no SNS.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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