Ao fim de discursos mais ou menos inflamados, com a ética a ser chamada à ribalta politiqueira como se resultasse apenas do facto dos cidadãos portugueses serem mais exigentes, ficou-se a saber que todos os partidos, mas mesmo todos os que têm assento parlamentar, têm um vasto currículo no que respeita a todo o tipo de laços familiares, incluindo os sanguíneos, associados a uma prática comum de favores prestados ou de hipocrisias com todo o tipo de especulação, desde a imobiliária à financeira.
Nunca o trocadilho segundo o qual “se há coisa que não falta entre nós é falta de ética” descreveu tão bem uma realidade. O problema é que isto não é de hoje. Afirmar-se que os portugueses são agora mais exigentes em relação à transparência republicana não explica tudo. A nossa História está recheada de episódios em que já a aristocracia geria o interesse público como se fosse coisa exclusivamente sua.
A verdadeira razão para isto ser hoje mais escandaloso do que no passado é só uma: a economia. As pessoas tendem a usar mecanismos de compensação ou de justificação em tempos de crise. Precisam de explicações para todo o mal que lhes acontece. É isso que permite ao ser humano suportar o insuportável. Acontece que grande parte delas já começou a perceber que seja qual for o governo nada mudará no essencial. A qualidade de vida da maioria não melhora, imperam a precariedade e todo o tipo de dificuldades, os bancos continuam a sugar-nos como vampiros, a dívida pública come connosco à mesa e bafeja-nos o pescoço enquanto dormimos.
Qualquer pai ou avô já não tem dúvidas sobre a cruz que a sua descendência terá de carregar. E isso faz, finalmente, pensar as pessoas. E ao fazê-lo, revolta-as. É em alturas destas que certos assuntos assumem uma força que não teriam noutro contexto. Num país em que todos vivessem bem, em que o rendimento fosse muito mais elevado e houvesse mais justiça social e muito menos impunidade dos poderosos, em que imperasse a imagem de uma classe política genuinamente prestadora de serviço público, ser-se conjugue ou filho de ministro não teria a importância que agora tem.
Mas nós não vivemos num país desses. Um estudo recente revelou o que todos já suspeitávamos: quase meio milhão de portugueses vivem em situação de pobreza. E já nem falo da pobreza encoberta, pois então os números seriam bem mais elevados. Mais de metade da população vive com dificuldades financeiras. São cidadãos a quem a classe política nada diz. São cidadãos que não têm dirigentes sindicais que reivindiquem o pão que lhes é roubado, e nem sequer estou a falar da elite política, dos banqueiros e dos donos disto tudo. É uma considerável parte da população que não sentiu o virar da página da austeridade, que não recebeu qualquer aumento salarial, que não progrediu em qualquer carreira, exceto na carreira do autocarro. É uma imensa mole de gente sem esperança.
Atirarem a essas pessoas com o discurso da melhoria da economia é um insulto. Falar-se de aumentos do poder de compra que essas pessoas não sentem, é inútil. Dizer-se que não houve um aumento brutal da carga fiscal, mas apenas um aumento da pressão, é indigno e nada sério. Em 2018 cada português teve de trabalhar 162 dias, quase meio ano, para pagar o valor total de IVA, IRS e outras contribuições cobradas pelo Estado central ou local. Há em Portugal uma classe média que empobreceu imenso com a “troika”, a quem não adianta falar de novas e prometedoras notações de uma qualquer agência financeira. O que os portugueses sabem do dia a dia é que os problemas da saúde, da habitação, empréstimos, eletricidade, gás, água, comunicações, transportes e alimentação desmentem tudo isso.
Na verdade, uma mentira engana mais facilmente quem está de barriga cheia do que quem a tem vazia. É tão certo como o sol nascer de novo amanhã. Só não vê quem não quer!