Escrevo com uma toalha enrolada na cabeça, para evitar que a água pingue sobre o teclado. As minhas costas estão encharcadas e cada vez que me movo na cadeira há um pedaço mais molhado das calças que se descola da perna. Os sapatos chiam com o excesso de humidade cada vez que mudo de posição e, com a raiva com que estou, não consigo ficar quieto.
A culpa do meu mísero estado, como sempre, é minha, mas houve um conjunto de circunstâncias a ajudar à tragédia. Desde logo, não lembra a ninguém procurar na cidade da Guarda uma faca de sushi. É verdade que aquela posta de cherne estava a reclamar ser comida crua, cortada em tiras finas e depois enrolada no meio de arroz e de uma folha de nori, mas a probabilidade de encontrar a faca era mais que diminuta e eu tinha a obrigação de sabê-lo. Nas grandes superfícies não encontrei nada, nem sequer uma faca de qualidade média, e lembrei-me então de ir ao Júlio Espigado, na rua da Torre.
O problema era o estacionamento. Como precisava também de ir ao banco e ao correio, assim como de comprar os jornais, lembrei-me de deixar o carro no largo João de Deus, como faço sempre. Nada. Parecia que havia menos lugares do que de costume. Tentei a Praça Velha e, surpresa, estava cortada ao trânsito por todos os lados. Lugares de estacionamento não havia era em lugar nenhum. Era como se as pessoas que costumavam parar na Praça Velha tivessem tomado de assalto, de uma só vez, os poucos lugares vagos que há habitualmente no resto da cidade. Servi-me então do plano “B”, que consiste em deixar o carro em cima do passeio, à frente do Montepio Geral.
Fui rapidamente ao banco e aos correios e, quando ia em direcção à rua da Torre, vejo um polícia a multar-me. Enquanto me passava a multa, que aceitei sem rancor, foi-me sugerindo que, em primeiro lugar, reclamasse da falta de estacionamentos junto da Câmara, que tinha eliminado os que havia na zona da Sé sem criar alternativas e, em segundo, que deixasse o carro na Avenida dos Bombeiros ou então na Avenida Monsenhor Mendes do Carmo, “que depois era só subir umas escadinhas”.
Foi o que fiz. Tentei sem sucesso a Avenida dos Bombeiros e acabei por estacionar perto do Hotel Vanguarda. No Júlio Espigado, onde cheguei a suar dez minutos depois, não havia facas de sushi, mas havia outras de qualidade e acabei por fazer negócio.
Já de regresso, no meio da Avenida dos Bombeiros, começou a chover. Não havia onde me abrigar e nada a fazer senão continuar estoicamente o meu caminho. As escadinhas, sob o peso da chuva, multiplicaram-se. A enxurrada caía-me em cima sem piedade e ameaçava levar-me colina abaixo, juntamente com a cidade inteira. É claro que não me sentia, no meu egoísmo, responsável pela situação. Para mim, os culpados eram aqueles que me obrigavam a estacionar a mais de quinhentos metros do meu destino. A minha raiva virava-se contra os responsáveis da Câmara Municipal, confortavelmente estacionados nas profundezas dos paços do Município – como me apontava rancorosamente o meu alter ego maligno, fustigado pela chuva e excitado pelo toque de quatro lâminas do mais puro aço inoxidável enriquecido com alto teor de carbono.
Felizmente não me apareceu ninguém pela frente. Felizmente ninguém me disse que andar a pé faz bem, que não é nada de mais andar quinhentos metros a pé numa cidade com seis meses de Inverno, que nós é que estamos habituados, e mal, a deixar o carro à porta da loja, que há muito estacionamento disponível na Guarda, como no cemitério, na Avenida Monsenhor Mendes do Carmo, no Rio Diz, na estação da Guarda. Noutra cidade qualquer.
Por: António Ferreira