Nos despreocupados e coloridos anos 80 do século passado, o Gil era conhecido em toda a Praça da República e arredores. Mais franzino de corpo que de inteleto, o Gil brilhava pela sua capacidade de transformar qualquer situação numa anedota a que, em cada reconto, acrescentava mais uns pós de piada. Só quem não viveu intermináveis tardes e noites estivais, sob os imensos ramos, pejados de passarada, daquelas árvores a sombrear a esplanada, é que não conhece a fonte de anedotas que aquilo era.
Do alto da sua mesa, o bom do meu amigo observava, descaradamente, todos os circunstantes e passantes. Adivinhava-lhes o caráter nos ritmos com que bebericavam a cerveja, para não esvaziarem os copos antes do fecho da esplanada, na sofreguidão com que os esvaziavam, ou na maneira de andar. Dizia ele, nas longas palestras que nos faziam desejar que, dos milhares de pássaros que dormiam nas árvores, um acordasse para ir à casa de banho. Às vezes, desejávamos isso com tanto fervor que acontecia um pássaro descuidar-se. Já se sabia que só isso para lhe acabar, de imediato, com as teorias behavioristas e lhe soltar a veia anedótica que fazia gargalhar a praça inteira. Era assim o Gil.
Um dia foi de excursão atrás da Académica até uma cidade do Norte. Não para ver o jogo de futebol, de que, de resto, não percebia nada. Foi porque não tinha mais nada para fazer naquele domingo à tarde. No fim do jogo, que a Académica perdeu por não sei quantos, no regresso ao autocarro, o Gil deu de caras com os restantes excursionistas a sair, cabisbaixos, do campo. Aquilo deve ter mexido com ele. Espicaçado os seus sentimentos. Vai daí subiu para os degraus da entrada do autocarro e desatou a animar os companheiros de viagem “gatunos, ladrões!” Fê-lo com o seu jeito, inato, para animar toda a gente, como é óbvio. Vai daí, todos os outros lhe sucedem em coro “gatunos, ladrões!” Animado pelo efeito, ensaia novo refrão e desata a gritar que se “faça e aconteça” até a turba acabar toda aos murros e pontapés. Jurou-me um amigo comum que, no meio da confusão, o Gil lhe terá, calmamente, confidenciado “bando de abéculas. Viste, como os pus ao murro?”
Só voltei a lembrar-me do Gil passadas quase três décadas sobre o último café, na esplanada da Praça. Calhou encontrar alguém desse tempo e aproveitei para lhe perguntar o que era feito de uns quantos e, claro, também dele. Melhor, ou pior, este, aquele e o outro tinham feito o percurso esperado para quem a Praça era um lugar de passagem para a universidade. O que me deixou ainda mais curiosa sobre o que seria feito de quem fazia da Praça sala de estar. “E do Gil, não sabes nada?” Perguntei, envergonhada, pela resposta que esperava meio miserável. “Ah! O Gil está muito bem, é vice-presidente de uma Câmara do Norte, perto da terra da mulher, está, mesmo, muito bem”.
Envergonhada por ter sentido vergonha de perguntar, já não tive coragem para perguntar mais nada. Mas, de vez em quando, pergunto-me se o Gil não será vice-presidente na Câmara da localidade onde, há anos, mostrou com quantas expressões se descontrola uma multidão a sair de um jogo de futebol.