Afinal, «aquele copo de vinho» ou «aquela lengalenga» são muito mais que uma «zurrapa da pior espécie», são memórias de um povo apagadas pelo tempo. Esta tese é o ponto de partida do livro “Jogos Tradicionais ao Serão e na Taberna”, do professor Mário Cameira Serra, docente da Escola Superior de Educação da Guarda (ESEG) e especialista em etnografia local. Trata-se do segundo livro sobre jogos tradicionais, onde o autor aborda um tema «aparentemente contraditório, pois refere-se aos jogos que tradicionalmente se realizavam ao serão e no espaço da taberna, dois «contextos diferentes», sublinha.
O domínio mais privado era considerado «um tempo sagrado», explica Mário Cameira Serra, onde os mais velhos passavam aos mais novos todo o tipo de tradições orais, lúdicas e festivas. Funcionava também como um complemento do trabalho, na medida em que «as senhoras remendavam as meias e o calçado dos miúdos, as raparigas faziam renda ou preparavam o enxoval», enfim, práticas que estão em desuso na sociedade de consumo que ditou o «desaparecimento» do serão familiar, lamenta, apontando como principais culpados a televisão e a evolução natural da vida. Inversamente, no domínio público, a taberna, «não sendo um local tão sério, era um tempo mais dionisíaco», de convívio da sociedade masculina «à volta do copo de vinho». O próprio ambiente e, talvez, os vapores etílicos característicos daqueles locais faziam com que se recordassem muitas canções, ditos e lengalengas, «o que proporcionavam mil e um tipos de jogos aleatórios, geralmente para seleccionar o pagador da bebida», refere o investigador. Mas também era comum a existência de outros jogos tradicionais, como jogos de força, destreza e precisão, nomeadamente de lançamento de moedas. Jogos que caíram em desuso por todo o país e no esquecimento «em muitos casos». Para Mário Cameira Serra, como o tempo e o espaço tradicional «se extinguiram», designadamente o contexto do trabalho agrícola e da própria taberna, «é natural que os elementos culturais que neles estavam inseridos desapareçam também».
Por isso, o objectivo principal desta obra é o de «reviver na memória» algumas dessas práticas lúdicas desaparecidas, enquanto outras têm actualmente «um lugar» nas instituições educativas, nos jardins de infância, nas escolas do ensino básico ou secundário. Até porque o autor acredita que os jogos tradicionais «ainda têm hoje uma grande importância». Mário Cameira Serra tem dedicado especial atenção às categorias de jogos. O seu primeiro livro nesta temática intitulou-se “O Jogo e o Trabalho – Episódios Lúdico-festivos das antigas ocupações agrícolas e pastoris colectivas”, sobre os jogos que aconteciam antes, durante e depois dos trabalhos agrícolas e pastoris. O próximo vai abordar «a afirmação da força» nos jogos tradicionais, adianta o professor, que é também autor de “O Castanheiro e a Castanha na Tradição e na Cultura”. Licenciado em Educação Física pelo INEF, obteve em 1992 o grau de mestre em Ciências da Educação pela Faculdade de Motricidade Humana, na Universidade Técnica de Lisboa, e em 1999 o doutoramento em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Neste momento é professor coordenador da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico da Guarda, onde dirige o Departamento de Ciências do Desporto e Educação Física e o Gabinete de Antropologia do Lúdico.
Patrícia Correia