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O oráculo de Temístocles

Quantas vezes o pensamento, ante os surpreendentes atavismos comportamentais destes tempos contingentes, se abalança num relance retrospetivo sobre esse imenso repositório de sensações e tirocínios que é uma biblioteca e recolhe ao oráculo da ancestralidade (como ensinava Ivan Illich) numa imersão obrigatória e tranquilizante na busca de entendimento para o desconserto urdido ciclicamente por essa massa informe que vem a ser a humanidade. Nada pode haver de inusitado no trânsito da fauna humana e por isso regresso à Grécia de Temístocles, em diagnose, como quem manuseia as páginas dos dias já vividos e instrui a sacerdotisa de sempre na releitura das incógnitas hodiernas…

O estadista e militar ateniense, que viveu entre c. 525 a.C. e 460 a.C. tendo empreendido uma das mais brilhantes carreiras políticas de que há memória no mundo clássico; um dos artífices de conceitos basilares da democracia, o admirável estratega e militar cobriu-se de glória e conquistou a admiração de todo o orbe helénico mercê não apenas do seu múnus como estadista, mas pela tenacidade com que enfrentou e reprimiu os arqui-inimigos dos gregos, os persas. Convencido de que o aniquilamento destes passava por criar uma marinha capaz de travar a sua prossecução, iniciou uma profunda reforma militar, com a fortificação do porto de Pireu, convertendo-o numa preponderante base naval. Todavia, adversários políticos, alguns de identificável mediocridade (mas ser membro de uma influente família era já, ao tempo, fautor determinante de prerrogativas carreiristas), opõem-se-lhe e digladiam os seus propósitos semeando o que viria a ser uma animadversão nefasta. Não obstante os infortúnios e oposições internas, não quebranta no seu afã e persevera numa política de defesa de base naval pois acredita ser esta a melhor estratégia para suster o avanço dos persas. Ante o temível poderio destes, que vinham obtido avassaladoras vitórias na Tessália e em Termópilas, com a destruição da Beócia e da Ática, causando enormes danos na própria Atenas (vários edifícios da Acrópole foram afetados – “Segunda Guerra Médica”) Temístocles, que entretanto se tornara o principal general grego da contraofensiva, concebe uma frota naval que enfrentaria as hostes lideradas por Xerxes I na famosa Batalha de Salamira (480 a. C.), em que o general grego se sagra vencedor e obriga o rei persa a regressar à Asia. Este feito militar – consta que a frota grega era em número consideravelmente menor que a inimiga – granjeara enorme prestígio a Temístocles que, daí em diante, inflige pesadas derrotas aos exércitos persas e colabora ativamente na reconstrução de Atenas impulsionando a conhecida “Liga de Delos” – a confederação de várias Cidades-Estado gregas que deveriam contribuir com navios ou monetariamente para a constituição de uma economia de guerra comum.

Mas subitamente, o herói grego, o consagrado aniquilador do poderio persa, o estadista aclamado, o político respeitadíssimo, cai em irremediável desgraça e é acusado de alta traição – numa incriminação que historicamente se tem por inverosímil e se crê resultante, por certo, de intrigas conjuradas e acusações ardilosas urdidas em redor de quem conseguiu granjear sucesso. Ora entre a práxis política grega, os eleitores que compunham a Eclésia – o órgão máximo da democracia ateniense, como se sabe – poderiam propor o desterro de um dos seus membros, por votação, caso tal se justificasse para manter a coesão da assembleia. Cada um deles deveria escrever num artefacto cerâmico (o “óstraco” ou “óstracon” – daí advém o termo “ostracismo”) o nome de quem desejavam proscrever por um período de dez anos. E a votação do órgão não deixara dúvidas, ditando a proscrição de Temístocles (a Arqueologia comprovaria mais tarde que este episódio, que se tinha por semilendário e relatado, entre outros por Plutarco, fora um facto: nas escavações que tiveram lugar na Ágora Antiga, a partir de 1857 e em sucessivas campanhas, foram exumados vários óstracos com o nome de Temístocles e que podem ser vistos hoje no Museu da Ágora Antiga, em Atenas; a estratigrafia permitiu datar aquela assembleia entre 490-480 a. C. ).

E assim se viu obrigado a abandonar Atenas, rumo ao exílio, o cidadão que tanto tinha feito pelo engrandecimento da Grécia. E quem o viria a acolher? Os mesmíssimos persas que ele combatera toda a vida e que, afinal, admiravam a sua bravura e génio… Não eram seus inimigos, eram apenas seus adversários. E acabou servindo como governador, o rei persa Artaxerxes I.

Por: João Mendes Rosa

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