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A inutilidade das coisas

Afunilava-se a visão da luz sob a ponte Vecchio. Entardecia e o tom dourado moldava-se às águas e aos azuis. Era uma luz feita de silêncio capaz de instigar à dança. Não era raro ver-se uma ou outra mulher voltear ao som da luz. Bastaria encontrar o degrau de pedra com um coração gravado. Uma poesia visual a vigiar cúpulas de capelas onde as vozes se disseminam até serem recolhidas por anjos. O dia escondia-se, devagar, nas mãos daqueles que na manhã seguinte as abririam para que a luz se cumprisse.

O poeta tinha um furor convergente nas veias. Todo o corpo expelia cuspo de vulcão imprevisto. Enquanto amarrotava folhas rasuradas de tinta preta, as sombras alargavam-se sitiando o espaço. A visão de Beatriz abria-lhe golpes na pele. Esse amor tornar-se-ia a razão de ser da sua poesia. Da própria vida. Numa viagem criaria uma comédia. Teria um final feliz. Seria guiado por Beatriz através de um paraíso carregando visões místicas onde só um estado de êxtase seria capaz de exprimir os inexplicáveis simbólico e sagrado.

Sempre se soube que a alma de Galileu pairava sobre as águas do rio Arno. A lei dos corpos em queda não se aplica a uma alma. Uma alma não é um corpo. Um qualquer deus teria que apartar as águas para o vácuo viabilizar a gravidade. Caminha-se pela margem do rio e, das impressões digitais, crescem flores que colonizam o chão verde-escuro da Primavera de Botticelli. Um bosque ali ao lado. Algumas entradas de luz. Duas delas, ora parecem olhos, ora parecem pulmões. Uma das três graças vira costas para a cena e acredita não estar cupido sujeito à lei da gravitação.

O escultor conquista uma dimensão cósmica e universal. Exibe o belo que só ele vira num bloco de mármore abandonado há mais de quarenta anos. Com outro bloco há-de atingir o sublime. Um cristo pesado demais a cair tragicamente das mãos de Maria e José. Divinos os degraus que nos levam à sua casa, para onde o foco de luz nos guia. A penumbra a tingir os passos. É por ela que iremos às casas que levantou para a eternidade de outros.

Cobiçamos o cair da noite e aquela bruma sob a ponte. Que as fogueiras acesas nos removam o bolor dos dedos cansados de escrever. De talhar. De pintar. Que mais nenhum lume se ateie para incinerar pessoas. Na praça ainda se cruzam carroças. O som das rodas sobre a calçada arrasta-nos. Um ou outro pombo mostram-nos o indício do vôo. Queremos atingir a torre. Segurar os ponteiros do relógio. Que o tempo não se afaste. Ainda temos que entrar pelas portas do paraíso. Tactear com a língua o bronze. Saber ao que sabe o amor. Entender a densidade dos corpos. Insistir para que os homens acreditem no que vêem.

Turistas fazem fotografias nas mais diversas poses. Alguns reconhecem o perfume que a ponte exala. Ninguém se lembra de depositar os restos mortais de Miguel Ângelo. Roubam o ouro dos lojistas da ponte Vecchio. Acredita-se que será fundido para cobrir os cabelos da Vénus que emerge do mar. Reavemos a concha das paixões espirituais que o vento oeste aporta. E ardemos na sombra. Como papel caligrafado a caneta de aparo. Ou belíssimos sobrescritos.

A nossa casa tem um terraço. Ali damos as mãos e lemos livros em braile. Sabemos de cor a forma triangular da Toscana, serpenteada de morros e colinas. Desconhecemos a orientação do Mar Lígure e do Mar Tirreno. Pressentimos o marejar nas madrugadas de marés distantes. Do terraço avistamos a cúpula da catedral onde um dia chorámos. Porque não cabíamos dentro. Porque não nos cabia dentro.

Por: Maria Afonso

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