As propostas para o Largo da Misericórdia, na Guarda, são bem vindas e dão prioridade ao peão e não ao carro, reconhecendo a importância das tílias maravilhosas em frente à Igreja da Misericórdia, das fachadas históricas e de grande valor que circundam o espaço.
São ideias simples e a simplicidade é sempre bem-vinda. Mas é fácil mudar de “simples” para “estéril” ou “vazio”, como aconteceu na Praça Velha. Depois requalificação realizada há mais de dez anos, a Praça Luís de Camões tornou-se num espaço útil e mais aberto, mas hostil e vazio; sem árvores, sem sombra, sem lugares para sentar e descansar – e sem qualquer elemento ou carácter próprio: uma identidade que ainda falta. O objetivo da intervenção era abrir a vista para a Sé, mas foi uma ideia fraca porque a Sé Catedral tem tanta majestade e tanta presença que não precisa de “proteção nenhuma de concorrência”. (…) Do ponto de vista prático, as grandes lajes de granito são difíceis de colocar corretamente, mancham-se com facilidade e as fendas e fissuras são frequentes. E na Praça, na zona onde trânsito necessariamente tinha de passar, o revestimento rapidamente chegou a ser sujo e feio.
Um exemplo similar de imprudente utilização de lajes grandes de granito aconteceu na “desqualificação” da Rua Rui da Pina até às Portas do Sol, feita precipitadamente há muitos anos no princípio do programa Polis para o
então ministro Sócrates passear com Maria do Carmo Borges… A superfície rapidamente ficou fissurada, suja e irregular.
Contudo, sabemos que as lajes lisas de granito são elegantes e excelentes quando usadas em combinação com outro tipo de revestimento, como, por exemplo, na Rua São Vicente e noutras zonas da antiga Judiaria da Guarda. Aqui, as lajes lisas nos centros das ruas e noutras aplicações oferecem superfícies ideais para carrinhos de bebé, bicicletas, sapatos de senhora e chuva, dando força visual e elegância.
Mas no Largo da Misericórdia é essencial que não repitamos os erros da Praça Luis de Camões. Precisamos texturas que anunciem que a Guarda é uma cidade antiga das serras, famosa para a sua beleza robusta e de pedra texturada. Os nossos melhores exemplos de pedra não foram feitos com superfícies lisas: aparecem na forma de muralhas, muros texturados, escadas, bancos e chafarizes de granito (…).
No Largo de Misericórdia as lajes lisas de granito devem ser utilizadas em zonas muito limitadas e só em combinação com tipos de pedra e revestimento mais pequenos – que são, em qualquer caso, uma herança nacional e pelos quais Portugal é justamente famoso.
Precisamos também dos seguintes elementos.
O atual cruzeiro não deve simplesmente desaparecer, mas ser reutilizado tendo uma placa com o nome da praceta e um pouco de história, sendo uma chave para o passado. Deve ainda ficar melhor posicionado do que o agora quase anónimo segundo rei de Portugal, D. Sancho… (Ao pé da Sé tenho ouvido “Sancho? Quem é este gajo?”).
Na declive deve optar-se por uns pequenos terraços. Estes possibilitaram incluir pequenas mesas, com cadeiras fixas, para jogos de carta, xadrez ou simplesmente para ler. Lá, mães com crianças podem comer uma sandes e os turistas podem abrir as guias – ou mais tipicamente abrir um portátil.
Essencial é também incluir mais elementos verdes e naturais no Largo, idealmente uma árvore ou mais, posicionada para criar sombra no lugar certo no futuro e para complementar as tílias existentes. Podem ser mais pequenas, como as árvores bem sucedidas no Largo de São João, em frente ao antigo Cine-Teatro.
Um quiosque clássico (como no Largo da Trindade, em Lisboa) talvez sobreviveria aqui com cafés e finos; útil será também uma coluna circular com posters de anúncios e eventos. Os músicos precisam de um lugar para equipamento, já com eletricidade instalada, e devemos assegurar que um ecrã temporário, para a exibição de filmes ou do futebol, teria espaço no lugar certo.
Também devemos manter na periferia um lugar para um táxi, para matar saudades. Já um painel com a história do espaço podia usar fotografias antigas. (…).
Temos que ser realistas quando “disciplinamos” o carro. Nesse sentido, a calçada que liga à Rua Tenente Valadim precisa uma textura diferenciada e uma margem enfaticamente definida, assim como o acabamento da “rua” em frente à Misericórdia – pensando também nas limousines e carros fúnebres –senão teremos zonas problemáticas para o peão e para o carro.
Isto ocorreu na Praça Velha com os carros a rondar a esquina da “Orquidea”, tendo sido necessário voltar e instalar pequenas floreiras para definir a rodovia e as lajes estão agora sujas e cansadas. Tal como a desacertada ligadura que é.
Um lojista da praça disse-me uma vez que «o português tem uma cabeça, um tronco, dois braços e quatro rodas» – os sul-africanos são iguais, mas muitos deles têm oito rodas. Portanto, o inevitável trânsito será seguramente muito denso frente à Misericórdia e à Torre dos Ferreiros. Uma calçada reservada ao trânsito não pode utilizar só grandes áreas de lajes lisas: precisa (como dissemos) uma superfície diferenciada; algumas lajes sim, mas com outros componentes mais pequenos; senão, uma superfície contínua de outro material.
Por exemplo, as famosas zonas pedestres da Cidade do Cabo (e sua ribeira requalificada) têm utilizado materiais como tijolos clássicos de barra, em castanho escuro, pequenos blocos de cimento, quase preto (não temos granito), fatias finas de asfalto preto, ou asfalto em borgonha escuro. Estes sujam menos, e devagar, dando variedade sob os nossos pés.
Lajes grandes de granito liso devem ser usadas em zonas limitadas neste Largo e devem ser alternadas com outros revestimentos – muitos dos quais já são parte da nossa herança nacional, e justamente reconhecidos.
Outra vantagem dos componentes pequenos é que tal revestimento é fácil para abrir, escavar e repor, sem deixar “cicatrizes” feias, e é mais seguro para o peão em tempos de gelo. Um toque feliz nalguns dos revestimentos recentes no Centro Histórico é que se mantinha o visual dos passeios – a direita e esquerda – com uma linha simples de pedras pretas, criando um eco plano e elegante dos passeios elevados agora eliminados. É óbvio que muitos prédios (com portas e janelas) ainda precisam um “plinto” visual; nos becos e ruelas estreitinhas não parece necessário.
Um marcador visual deve ser visível à distância da zona do shopping La Vie, na Avenida dos Bombeiros Voluntários, para o peão e também para o carro, ascendendo até a intersecção. O Largo da Misericórdia não é exatamente uma porta (“gateway”, em inglês) mas assinala a nossa chegada ao “coração” da cidade velha. Luz ou cor, estrutura ou escultura, algo é necessário para atrair o olho de longe. Depois de chegarmos, a Igreja da Misericórdia, o novo espaço e as árvores serão os elementos dominantes.
Por: Rory Birkby
* Arquiteto natural da Cidade do Cabo (África do Sul), mestre em Planeamento Urbano, residente sazonal na Guarda, em cujo centro histórico adquiriu uma casa em 1990, e colaborador de “O INTERIOR”
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