Reza a fábula que certo escorpião, por não saber nadar, convenceu um elefante a transportá-lo para o outro lado do rio, comprometendo-se a não o picar. Quando o elefante sentiu uma picada e confrontou o escorpião com a sua desonestidade, este terá replicado “a natureza é a natureza. Esta é a minha!” Moral da estória: no fundo, no fundo, tudo se resumirá a cada um agir de acordo com a sua própria natureza.
Num mundo de endeusamento da imagem, mesmo que virtual, em que qualquer subterfúgio nos surge como legítimo para aceder ao Olimpo, acabamos todos por ser escorpiões e elefantes. Escorpiões quando nos julgamos os mais espertos (mesmo que acabemos a ser arrastados pelo cadáver do elefante para o fundo do rio), pretendendo chegar onde não temos capacidade para ir. Elefantes quando, querendo agradar a todos, preferimos ser ingénuos, preterindo a inquietação do ceticismo a favor do conforto da credulidade. Se alguém nos paga o almoço sem haver aniversário, dá-nos sempre para acreditar que é por gostar muito de nós. Sabem tão bem uns almoços de borla! Haja quem se disponha a pagar que, quem queira receber, não faltará.
Seria bom é que, qual escorpião, cada um assumisse a sua própria natureza em vez de dissimulá-la com discursos moralistas. Assim tipo aqueles deputados que nos acusavam de abusar do sistema, dos apoios sociais, enquanto nos ludibriavam com moradas fictícias e diplomas forjados… Ou tipo aqueles governantes e respetiva corte banqueira – ou aqueles banqueiros e respetiva corte governativa – a acusar-nos de viver acima das nossas possibilidades enquanto tratavam de assegurar a aquisição de um Bugatti!
De evitar seria também não cair na candura do elefante e deixarmos de restringir a uma classe, a um grupo, a um regime, características próprias da espécie humana, ou seja, de todos nós. Quem nunca pagou “um favor” (a funcionário, médico, professor, enfermeiro, inspetor…) com um queijito que atire a primeira pedra. Foi sempre coisa pouca, sem importância, retorquirão. Pode ter sido, só que tudo é relativo, logo a quantidade e a importância também. Em termos de proporcionalidade, dar um queijo a um qualquer funcionário, por uma “simples” ultrapassagem na lista de espera, ou um jeitito num qualquer documento, equivalerá a quanto por uma lei à medida? Um, dois milhões de euros? Pois é, só pela dimensão da “coisa”, tendemos a considerar um “queijito” uma mera manifestação de agrado e os milhões corrupção. Ai, esta nossa mania de só valorizar coisas em grande! Depois não consideramos corrupção o “agradecer” com um “queijito” ou peculato levar para casa umas canetitas lá do serviço. Valham-nos os códigos, civil e religioso, que aferem da ilicitude e imoralidade destas coisas. Resta-nos assim a possibilidade de – os que não somos políticos, banqueiros, empresários, os que só temos tamanho para corrupções de charcutaria e acesso a umas canetitas – podermos dormir descansados. Exatamente com o mesmo descanso com que dormirão aqueles, dos milhões, a quem chamamos corruptos. Mas só se forem apanhados com a boca na botija. Até lá, continuarão, impunemente, a ser os ídolos da canalha.
Por: Fidélia Pissarra