Foi Martin Heidegger que deu por materializada, nos tempos hodiernos, aquela que fora afinal uma autêntica profecia setecentista de Condorcet: «Qualquer sociedade que não seja iluminada pelos filósofos é enganada pelos charlatães». Num admirável texto vertido na obra “Serenidade” (1955) aquele que é considerado um dos maiores filósofos da nossa era – pese embora a abstrusidade de alguns dos seus posicionamentos políticos – conclui que o homem atual está a empreender uma autêntica fuga ao pensamento e, mais grave que isso, condescende imperturbável ante o prevalecimento de uma mentalidade que, conscientemente, reconhece nessa fuga uma aceitável “evolução” ontológica: com tantos avanços tecnológicos, tantos progressos científicos, com tamanho desenvolvimento material e aportações produtivas tão inovadoras, o pensamento – e a conclusão heideggeriana reporta-se concretamente ao “pensamento mediativo” – parece ter sido definitivamente deposto ou relegado para um plano de auto negação, em subalternização aos imperativos capitalistas. Por inépcia, por um lado, mas também porque tal ausência (ou contrafação semântica) serviu plenamente os intuitos tecnocracistas, os seus sequazes têm sido verdadeiros fautores da aridez intelectual que hoje campeia entre nós. No belíssimo texto em apreço, Heidegger reflete sobre a hegemonia da técnica moderna (cujos réditos não nega, aliás) e demonstra que só o retomar de uma consciência meditativa por oposição a um vivencialismo apático e indolente poderá conferir às sociedades vindouras a compleição que nutre a própria da essência do homem, que outra não é afinal que não a que decorre da condição de “ser pensante”. Longe de estarmos perante a preconização de uma atitude segregadora ou até propiciatória de um certo elitismo, Heidegger explica que a natureza do pensamento de que fala não se reporta tanto à forma filosófica do mesmo, mas evidencia a absoluta necessidade de fazer da reflexão do estabelecimento de premissas cognitivas, um antídoto contra a hegemonia do «pensamento calculador» (“das rechnende Denken”): e o pensamento que calcula… faz cálculos. O pensamento “que calcula” nunca se detém, nunca chega a meditar.
Não falta quem objete que a reflexão se distancia da realidade prática, rejeita as temáticas correntes e desfavorece a praxis. Ouvimos a Richard Zimler, numa tertúlia no Chiado decorrente da apresentação do seu magnífico “O Evangelho segundo Lázaro”, que nos Estados Unidos, onde nascera, um investigador, um escritor, um articulista, um poeta, tinha para a generalidade dos cidadãos uma categoria equivalente ao mais desprezível dos ofícios, um parasita, um inútil do mais ignóbil jaez. Sintomático! Todavia o autor de “Ser e Tempo” remete-nos para uma dimensão do pensamento que se limita à exigência de um conhecimento de si e dos outros, mas requer um treino demorado, o cultivo de determinadas atitudes, fazer escolhas, optar por caminhos: mas tal carece de imperativos concernentes, estar munido de ferramentas emotivas, de procedimentos intelectivos mínimos, de códigos vivenciais como em qualquer outro ofício, mas não necessita de aspirar às altas instâncias da cognoscência: «Basta demorarmo-nos junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora»; numa palavras, recusar a robotização humana.
Contudo, a fuga à meditação é um facto. E a incompreensão ante quem cultiva e labora no pensamento também. António Alçada Baptista, saudoso amigo de longas horas de solta cavaqueira, contou-nos numa certa e memorável madrugada que Jorge Amado (de quem era íntimo) estava certo dia deitado numa cama-de-rede, lendo e escrevendo, na sua varanda. Passando um vizinho pergunta-lhe: – “Então patrão, descansando?” Ao que o escritor responde: – “Não, não, trabalhando…”. No dia seguinte, passa o mesmo vizinho e encontra Jorge Amado de mangueira na mão a regar o jardim… Inquire-o novamente: – “Então patrão, trabalhando?” – “Não, não, descansando…”
Por: João Mendes Rosa