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Florial

1. A Anita foi de férias com o João e o Francisco /a Paula e a Joana, seus pais adoptivos, que haviam casado com pompa e circunstância. Na escola, foi obrigada a integrar uma lista por causa da lei das quotas. Durante as férias, a família levava sempre consigo ao restaurante o cão, o gato, o cágado e uma aranha de estimação. À noite, havia saraus sobre temas edificantes, como a identidade de género, o género ao longo da História e o género na identidade. A meio das férias, quando fez 16 anos, a Anita decidiu mudar de… género. Foi ao Centro de Saúde, marcou a cirurgia, e pronto! Entusiasmados com a ideia, o João e a Paula decidiram fazer o mesmo. De tal forma que regressaram a casa: o Toneca (ex-Anita), a Joana (ex-João) com a Joana / o Paulo (ex-Paula) com o Francisco e o Óscar, um transexual que não tem nada a ver com a história. Pouco depois, foram dar um passeio até Salamanca. O veículo consumia a gasolina mais cara da Europa, graças aos impostos do prof. Centeno. O jovem não deixou de reparar que as portagens na A 23 eram não só as mais caras do país, como formavam uma barreira protectora da pureza do interior contra invasões indesejadas. Logo que entraram em Espanha, foram a um posto de abastecimento de combustível comparar os preços. Só por curiosidade, é claro! Quando perceberam que a gasolina custava menos 40 cêntimos por litro, resolveram encher o depósito. De caminho, passaram no supermercado e foram às compras. Deram conta de que não só o nível dos preços era mais baixo, como pagavam menos IVA! A surpresa veio quando, pouco depois, entraram na auto estrada e não viram nem portagens nem barreiras! E que a construção era de melhor qualidade. E que a manutenção era exemplar! O Toneca até comentou: “São mesmo tótós estes espanhóis! Auto estradas grátis? Nós estamos muito mais avançados! Já podemos levar os animais aos restaurantes, mudar de sexo na hora, ignorar os velhos, esses chatos improdutivos, assim tipo… sei lá!”. Os pais / mães adoptivas pararam o carro, abraçaram o Toneca e logo lhe puseram um charro nas mãos. Enquanto assistiam, via YouTube, a um resumo das intervenções das deputadas Moreira e Martins e deputado Galamba. Um quadro comovente! Como é bom viver no Geringonstão!

2. Em 1968, nos EUA, durante as convenções democrática e republicana, o escritor Gore Vidal e o ensaísta e comentador político William F Buckkey Jr protagonizaram uma série de 10 debates televisivos, na estação ABC News. Esses momentos inauguraram uma nova era do debate político. Vidal era um liberal (nos EUA, significa ‘esquerdista’) na primeira linha da contestação à guerra do Vietname e à repressão das minorias. As suas obras distinguiam-se por uma abordagem livre de certos temas tabu, como questões de género, problemas das minorias étnicas ou sexuais, desigualdades sociais, etc. Confrontando o establishment conservador com um tempo novo e uma realidade que uma moralidade obsoleta pretendia ignorar. Gore Vidal era, no tempo, a bête noire do conservadorismo WASP reinante. Muito por causa do escândalo criado pela publicação de “Myra Breckinridge”, imediatamente levado ao cinema. Buckley, por sua vez, era o conceituado e mediático representante de um conservadorismo de inspiração cristã, mas de um tipo completamente novo. Buckley conhecia o poder da TV, onde se sentia perfeitamente à vontade. Tinha um sentido de humor fatal para os seus opositores. O seu universo era o da mundaneidade, do homo videns urbano e esclarecido, irredutível em relação às liberdades individuais e à importância da ordem. Buckkey inspirava-se sobretudo numa tradição libertária individualista, muito forte nos EUA desde os seus primórdios. Por sua vez, Vidal era amigo de Capote e Mailer, dois baluartes do pensamento progressista desse tempo. Mailer publicaria, nesse mesmo ano, “Os Exército da Noite” o polémico relato das manifestações em Washington contra a guerra e pelos direitos civis, no ano anterior, e onde chegou mesmo a ser preso. Mas Vidal e Buckley tinham algo em comum. Eram produtos acabados das elitistas universidades da Ivy League. Nesse sentido, o glamour e a afectação, evidenciados nos debates, soariam hoje a um pedantismo muito pouco televisivo. Na altura, porém,era sinónimo de fair play e fino trato entre eruditos. Mas as boas maneiras haveriam de vacilar, no calor do debate entre dois mundos inconciliáveis. Na penúltima sessão – durante a convenção dos democratas em Chicago célebre pelas violentas confrontações entre polícia e manifestantes – o verniz estalou, com estrondo. A verta altura, Vidal chamou a Buckley cripto-nazi. Este, visivelmente irritado, retorquiu ameaçando Vidal que lhe iria dar um soco em directo, ao mesmo tempo que o apelidava de “maricas”.

3. A única faceta de José Sócrates, aliás confessada pelo próprio, que entendo e quase louvo, é a vaidade. Na verdade, com excepção dos anacoretas, quem fica indiferente ao seu apelo? Um exemplo. Hoje à tarde não resisti a passear os sapatinhos novos pela cidade onde vivo. Creio mesmo que fui passeado por eles. Nisto de vanitas, a diferença entre mim e o ex recluso 44 não é de natureza, mas de grau. A dele custou a solvabilidade de um país. A minha custou 32 euros, mais taxas. Que paguei do meu bolso.

4. Ir ao encontro dos outros. Tocar-lhes em algum ponto remoto, ou à vista de todos. Não importa. Ou num desenho que as pontas soltas do tempo vão completando e que talvez um dia eles descubram os traços. Apanhá-los a meio do caminho. No meio da fragilidade que os faz hesitar e da coragem que os desata. E contudo ficar longe. Passar da atenção ao silêncio sem um queixume. Ser um bocadinho de todos e completamente de si.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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