Presos. Fechados num universo concentracionário. Muros cinco vezes maiores do que um homem. Grades e portas de ferro. Chaves do lado de fora.
Falam. Falam. Contam as suas vidas. Vividas ou inventadas. Histórias à margem. Histórias da margem. Algumas, dolorosas. Outras, chocantes. Tráfico, homicídio, roubo, violência, burla, assalto.
Estes homens e estas mulheres são protagonistas de “crimes” que os atiraram para ali, para longe do olhar dos outros, leia-se, de nós.
Um de cada vez contou-me histórias trespassadas pela raiva, o desamor, a ambição, a violência, o sofrimento, o risco, a morte. Falaram e eu ouvi. Escrevi, sublinhei, risquei, liguei frases que procuravam outras. Palavras de fogo num caderno imaculado.
A minha ideia inicial era ouvi-los com vagar, para depois escrever textos que contassem as suas vidas atribuladas. Ouvir, escrever, escolher, riscar, escrever outra vez. Porém, passaram-se meses e não fui capaz de narrar a vida daquelas pessoas, tão reais, com as suas tristezas e as suas esporádicas alegrias. Tão reais! Demasiado reais!
Mudança de planos. Ler em voz alta os apontamentos, fragmentar as narrativas, estilhaçar a coerência dos relatos. Como num parlatório: todos a falar ao mesmo tempo. Como num parlatório onde todos ouvíssemos parte das histórias dos outros. Depois, juntar-lhe o que é do domínio do indizível: vozes viscerais, vozes que não pronunciam uma só palavra entendível, choros por ninguém, ecos dos ecos, um derradeiro esgar, ruídos bucais, cânticos de lamento, línguas imaginárias, rezas sem fé, revoltas íntimas, o som do sangue.
Ouvi o que me contaram sete reclusos do Estabelecimento Prisional da Guarda. Não consegui ou não quis escrever sobre as suas vidas. Escolhi interpretar as palavras ditadas usando as minhas vozes. Preferi falar (ou gritar) em vez deles.
Por: Américo Rodrigues*
* Ator, encenador e poeta sonoro