Se sete vidas tivesse – e não conhecesse esta terra e esta gente – em cada uma marcaria a cidade de Trancoso no meu roteiro.
Trancoso é como um livro dedicado ao esplendor da imagem, é um espaço pictórico que se visita como uma galeria e é um museu de preciosidades, um álbum de recordações, uma arca de testemunhos antigos, humanos e históricos de Portugal.
Se livro fosse, os capítulos de Trancoso deviam ser lidos em voz alta, porque foi assim que os valores neles escritos foram transmitidos de geração em geração; como espaço pictórico repercute a imaginação fértil dos nossos antepassados na sua monumentalidade. Se museu, as galerias estariam repletas da sua vivência quotidiana, o traçado das suas ruas, as muralhas que cercam a antiga vila, ainda fervente como em medievas eras; como álbum e arca de memórias, a cada esquina, na Judiaria, nas portas duplas abertas nas muralhas, ouvir-se-iam narrar as conquistas e reconquistas à gente moura, as refregas com os castelhanos, o marchar impiedoso das botifarras da soldadesca napoleónica, enfim, os seus temores, os seus medos, os seus costumes e folias.
Dizer que Trancoso é terra cheia de História, não é novidade para ninguém. E quem diz História diz Coragem, Altivez, Nobreza, Maravilha.
Esta terra foi propícia à celebração das bodas de D. Dinis com Isabel de Aragão, ela que foi, a par da esposa, o amor de El-Rei que lha ofereceu em dote. Esta terra foi a ideal para nela ser criada uma feira franca, que ao longo de 744 anos é recordada como a mais antiga de Portugal (7 de agosto de 1273), mais pretendida e a mais concorrida das feiras anuais, com o nome de S. Bartolomeu e com o lustre de Gil Vicente através da sua Mofina Mendes. Esta terra foi a necessária para criar homens da garra dos que combateram os castelhanos na Batalha de S. Marcos e contribuíram para a independência de Portugal. Esta terra foi a escolhida pelos mouros como terra de conquista e pelos cristãos que a reconquistaram. Esta terra foi a última guarida de D. Sancho II, deposto rei que se despediu do reino em Moreira de Rei. É ainda a mátria do propalado Padre Costa, homem de numerosa prole e outro tanto de exagerada fama, onde lhe assacam 299 filhos de 53 mulheres. Esta é a terra do lendário Magriço (natural de Penedono, mas filho do alcaide-mor de Trancoso Gonçalo Vasques Coutinho), imortalizado por Camões como “Um dos Doze de Inglaterra”. Esta é a terra do Bandarra, aquele sapateiro-profeta que alvoroçou a Inquisição, que profetizou o futuro de Portugal e que potenciou o mito sebastianista e a glória do V Império referido por Vieira e Fernando Pessoa. Esta terra foi a martirizada pelos avanços belicosos dos soldados de Napoleão e quartel-general do comandante das tropas anglo-lusas. Esta terra foi a contemplada por antigos forais de liberdade e dignidade, que fez questão de sempre respeitar. Esta terra é aquela que é atualmente composta por 21 freguesias, todas elas parte e testemunho da sua História.
Do património construído, que se acasala na Natureza com essoutro natural, ressaltam as referências seguintes: Castelo e Muralhas que cercam o Centro Histórico são os mais importantes e os mais antigos monumentos do concelho de Trancoso. A fortaleza é anterior à Nacionalidade, foi reforçada por D. Dinis com sete torres amuralhadas, quatro das quais vãs. As suas muralhas foram restauradas em 1173, 1282, 1530 e 1940. A Torre de Menagem, que não ocupa o centro da cidadela, é de configuração rara, em forma de pirâmide truncada, possui uma janela árabe, com arco de volta de ferradura. Este castelo, que os Templários receberam por doação, bem como as muralhas que circundam a vila, está classificado como Monumento Nacional, por Decreto 7586, de 8 de Junho de 1921.
Castelo de Moreira de Rei, que já existia nos primórdios da Nacionalidade e foi reedificado por D. Teresa e provavelmente no séc. XVIII. Do castelo restam alguns panos de muralhas e os vestígios de uma cisterna. Foi classificado Monumento Nacional por Decreto 21354, de 13 de Junho de 1932.
Pelourinho de Trancoso, monumento manuelino, contemporâneo do foral novo. O fuste é facetado, sobre quatro degraus e remata com colunelos que formam a gaiola, em número de cinco. A cimeira é cónica e remata com uma esfera armilar. Considerado Monumento Nacional por Decreto de 16 de junho de 1910.
Capela de Santa Luzia, com data do séc. XII, em estilo românico de transição para o ogival, com arco cruzeiro. A cabeceira está ornada com cachorrada. No séc. XVII, foi-lhe introduzido o portal que olha ao Sul. Classificada Imóvel de Interesse Público por Decreto 39175, de 17 de abril de 1953.
Cruzeiro do Senhor da Boa Morte, manuelino, coberto com abóbada assente sobre quatro colunas, o qual foi mandado cobrir em 1729 pelo Padre Matias Álvares. Situava-se então em frente das Portas do Prado. O crucifixo é em granito rosado.
Capela de São Bartolomeu, templo reconstruído, ao que se supõe, sobre um já existente. Aventa-se a hipótese de aqui ter existido a igreja de S. Bartolomeu o Velho. A reconstrução é de 1778 e foi feita em memória dos esponsais de D. Dinis com Isabel de Aragão. A parede a Sul tem uma lápide de azulejos, evocativa do casamento real.
Casa dos Arcos da Praça, junto à Igreja de São Pedro, um belo exemplar de palacete setecentista. Junto a esta, encontra-se uma casa com arcadas medievais, onde os feirantes colocavam os seus produtos. Esta casa foi mandada construir no séc. XVII (e alterada no séc. XIX), sendo adaptada pelo Padre Saraiva da Rocha como presente de casamento de uma sobrinha.
Casa dos Arcos da Corredoura – Constitui um dos primeiros edifícios que chamam a atenção do visitante quando se entra pelas Portas d’El-Rei. É um edifício de dois pisos e telhado de três águas, dos finais do séc. XVII ou inícios do séc. XVIII, situado junto às Portas d’El-Rei, do lado esquerdo de quem entra, no início da Corredoura ou Rua Direita (ex-Rua Dr. Fernandes Vaz).
Não obstante ser cidade, considerada ainda vila medieval, encontra-se integrada nas doze Aldeias Históricas de Portugal. Paradoxo esta trilogia corográfica? Nem por isso: essas três vinhetas suscitam a imaginação daquele arco urbano, tão resguardado entre torres e muralhas, que nos ocorre já ter visto nas ilustração dos Grimm e de Gonçalo Trancoso, como expandido extramuros, livre e espalhado pelo planalto, sem pejo de sacrificar ao progresso a sua textura.
Não se finda sem publicitar a oferta de um hotel de quatro estrelas, de onde se descortina a torre de um dos antigos conventos, de frades franciscanos, ou a Serra de Almançor, nem sequer se oculta a possibilidade de degustação do doce conventual de um outro convento, de freiras clarissas, que originaram uma confraria – as Sardinhas Doces de Trancoso.
Esta é a nossa terra. Portanto, é também a sua.
O convite é nosso, a vontade é de todos vós.
Vinde…
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Fernando J. Santos Costa
Escritor de ficção, contista, jornalista amador, diretor de publicações periódicas, comentador e autor de programas de rádio. Investigador de História e Etnografia, ilustrador e autor de Banda Desenhada. 70 livros publicados.
O INTERIOR / Sapo24