O trabalho da jornalista Ana Leal sobre a associação Raríssimas provocou um furacão na vida social e política portuguesa. A reportagem, bem documentada e com um alinhamento claro, não deixou margem para dúvidas ou contestação: a presidente da Raríssimas praticou má gestão, geriu de forma abusiva, prepotente e em benefício próprio uma associação de interesse público e que recebeu do Estado, desde 2013, 2,7 milhões de euros.
Paula Brito e Costa fundou a associação por uma causa nobre (Marco, um dos seus filhos, morreu com uma doença rara), deu dimensão e recebeu simpatias e apoios de todos os lados, tantos que rapidamente a Segurança Social e diversos políticos apadrinharam a causa e o projeto. A espiral de financiamento contribuiu e estimulou tentações e gastos supérfluos impensáveis. O bom trabalho e a causa nobre passaram a ser o suporte de uma insustentável feira de vaidade e interesse pessoal. Muito mais grave do que os custos com os vestidos ou as viagens da senhora, a Raríssimas passou a ser um antro de prepotência e despesa suportada pelo erário público; Paula Brito e Costa criou o seu próprio emprego e a seguir empregou a família (o marido e o filho) enquanto recebia dinheiro público para pagar a sua vida fausta e sumptuosa.
A senhora já se demitiu. Não tinha outro caminho. Com ela, caiu o secretário de Estado da Saúde que apoiava a instituição e teve uma avença de três mil euros mensais desde 2013 (recebeu 63 mil euros em total) para colaborar na «área de organização» (trabalho que nunca terá sido vislumbrado); a deputada socialista Sónia Fertuzinhos (que é mulher do ministro da Segurança Social, Vieira da Silva, e foi vice-presidente da Assembleia Geral da Raríssimas) colaborou também com a associação e teve uma viagem à Suécia inicialmente paga pela Raríssimas (terá depois ressarcido a associação). Mas outros políticos “passaram” ou colaboraram com a instituição, do PS e do PSD. Aliás, a Raríssimas teve mesmo o “alto patrocínio” de Maria Cavaco Silva, o que contribuiu, sobremaneira, para abrir portas e receber apoios.
A primeira lição da Raríssimas: Portugal é um país de interesses e amiguismo onde as relações promíscuas entre agentes económicos e sociais com partidos e políticos acabam sempre com elevada dose de corrupção.
A segunda lição: o financiamento público (necessário para dinamizar o apoio social) acaba sempre por criar uma rede de interesses e esquemas difíceis de identificar e que passam ao lado das inspeções. Por todo o país há IPSS’s com relações promíscuas entre dirigentes, políticos e responsáveis públicos.
O Estado demitiu-se de responder diretamente às necessidades de apoio social. As creches, os lares, os centros de acolhimento a pessoas com carência ou incapacitadas, os deficientes, os mais frágeis da sociedade, etc, foram abandonados pelo Estado e foram as associações particulares, as Misericórdias, as instituições de solidariedade que assumiram essa tarefa. E bem – a árvore não faz floresta! E há efetivamente um mundo de solidariedade e beneficência que não deve ser diminuído por causa dos maus exemplos. Porém, não se pode continuar a tolerar o financiamento público daquilo que (orgulhosamente) se passou a designar de economia social sem haver fiscalização e controlo absoluto. Não podemos continuar a pagar uma suposta solidariedade que afinal não é mais do que um serviço privado pago por dinheiros públicos. E temos de repensar toda a estratégia pública de apoio às Misericórdias, fundações, IPSS e associações de beneficência. Não é “raríssimo” que os vícios privados sejam pagos por dinheiros públicos. E não pode continuar a ser assim. De alguma coisa deverá servir este exemplo.
Luis Baptista-Martins