Que ingredientes são necessários para curar um país das trevas? Na Dinamarca, no século XVIII, ensinam-nos que basta um rei hamletiano, que sonha viver eternamente numa peça de teatro, uma rainha que veste roupa de homem, e um médico próximo dos iluministas, para construir uma revolução. E com que armas deveremos atacar se quisermos frustrar essa mesma ruptura? Um anão aparentemente insignificante, uma rainha-viúva de cara de pedra, e uma conspiração orquestrada entre ambos. Em A Visita do Médico Real, Per Olov Enquist, ao contrário de Christian VII, não precisara de encenar nada: a história, que viera espalhar os ideias iluministas, esteve sempre resguardada na biblioteca de Copenhaga. Apenas precisava de algum tempo para que pudesse voltar a nascer em asas de borboleta.
Tempo: foi esse o principal contratempo que fez com que eu quisesse perceber melhor em que ponteiros do relógio este sangue azul se esquivava. Logo no início, sabemos que tudo irá desaguar a Johann Friedrich Struensee – o jovem que, num mero acaso, aceitara ser o médico real do rei dinamarquês Christian VII. Para os que padecem do mal dos calendários, convém lembrar que o “tempo de Struensee” começara na primavera de 1768. Para os que sofrem as maleitas do romance, inicia-se aqui um período em que o médico silencioso, ainda ingénuo perante os jogos da política, apaixona-se pela jovem rainha Caroline Mathilde.
Numa Dinamarca reaccionária, poucos são os encontros entre seres humanos. Christian, com uma úlcera na alma, criara um vazio no centro do poder; Struensee, influenciado pelas leituras de Rousseau e Voltaire, faz-nos aproximar de um mundo onde seria preferível que todos os homens e mulheres fossem transformados em animais de quatro patas. Caroline, no entanto, fora a primeira a perceber que na beleza deste país cabia uma fealdade enorme. Talvez por exigir mais do mundo, talvez por ter conhecido o exílio num tempo ainda precoce, ou talvez por compreender a revolução que acontecia nos olhos de um cavalo: “Algumas pessoas podem chegar aos cem anos sem verem nada. Há um mundo no exterior da corte; e quando pronuncio estas palavras a membrana protectora que me separa dele rompe-se, o terror e a fúria inflamam-se, e eu serei livre”.
Num outono que não se sabia desvanecer, Struensee avançava de reforma em reforma, com a certeza de que estaria cada vez mais perdido: “Desejar a rainha era tocar na morte. Ela era proibida e desejada, e qualquer um que tocasse a mais proibida de todas, teria de morrer”. Mas o que fica dos lugares quando as pessoas desaparecem? Os séculos passaram, e hoje até podemos ouvir falar do jardim Aschberg ou do Castelo de Kronborg, mas em nenhuma parte da Dinamarca fora erguido um monumento em homenagem a Struensee. Haverá um tempo certo para a revolução? Eu não conheço a resposta a essa pergunta, mas sei que, enquanto houver quem queira regressar a este passado, as personagens desta história permanecerão vivas.
Melanie Alves
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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